terça-feira, 29 de março de 2016

Prólogo

2007

Quando ele sai do banheiro, ela está acordada, recostada nos travesseiros e folheando os prospectos
de viagem que estavam ao lado da cama. Usa uma camiseta dele e seu cabelo comprido está despenteado de uma maneira que o faz lembrar da noite anterior.
Ele fica parado, desfrutando da breve recordação enquanto enxuga seu próprio cabelo com uma toalha.
Ela levanta os olhos do prospecto e faz um beicinho. É um pouco velha para isso, mas eles estão juntos há pouco tempo e ainda é bonitinho.
— A gente precisa mesmo fazer algo que envolva escalar montanhas ou se pendurar em ribanceiras? É a primeira vez que vamos tirar férias juntos para valer e não há uma única viagem nesses folhetos que não envolva se atirar de algum lugar ou — ela finge tiritar de frio — usar casacos de fleece.
Ela joga os folhetos na cama e estica os braços bronzeados acima da cabeça. A voz está rouca, prova de que dormiram pouco.
— Que tal um spa de luxo em Bali? Poderíamos ficar deitados na areia... passar horas sendo paparicados... ter longas noites relaxantes...
— Não posso ter esse tipo de férias. Preciso de atividade...
— Como se jogar de aviões.
— Não critique até que tenha experimentado.
Ela fica amuada.
— Se você não se importar, acho que vou continuar criticando.
A camiseta dele está ligeiramente úmida em sua pele. Ele passa um pente pelo cabelo, liga o celular e dá uma olhada na lista de recados que surge imediatamente na telinha.
— Muito bem, preciso ir — diz ele. — Tome seu café da manhã. — Inclina-se sobre a cama para beijá-la. Ela tem um cheiro morno, perfumado e muito sensual. Ele inala o aroma de sua nuca e, por um instante, perde o rumo dos pensamentos quando ela o envolve pelo pescoço com os braços, puxando-o para a cama.
— Ainda vamos viajar no fim de semana?
Ele se desvencilha, relutante.
— Depende do que acontecer nessa reunião. Por enquanto, tudo está meio no ar. Pode ser que eu ainda tenha de ir a Nova York. Que tal jantar num lugar bacana na quinta-feira, para compensar? Você escolhe o restaurante.
Sua jaqueta de motoqueiro está pendurada atrás da porta, ele a pega.
Ela estreita os olhos, pensativa.
— Jantar com ou sem o Sr. BlackBerry?
— Com quem?
— O Sr. BlackBerry faz com que eu me sinta uma intrusa. — Ela faz beicinho de novo. — Parece que sempre tem uma terceira pessoa disputando sua atenção.
— Vou colocá-lo no silencioso.
— Will Traynor! — ela o repreende. — Você precisa desligar esse aparelho em algum momento.
— Na noite passada eu desliguei, não foi?
— Só sob enorme coação.
Ele sorri.
— É assim que chamamos isso agora? — Ele calça os sapatos.
E o efeito que Lissa mantinha sobre sua mente se rompe. Ele joga a jaqueta de motoqueiro no braço e lança um beijo para ela ao sair.
O BlackBerry tem vinte e duas mensagens, a primeira delas enviada de Nova York às três e quarenta e dois da manhã. Algum problema legal. Will desce de elevador até o estacionamento no subsolo, tentando rememorar os acontecimentos da noite.
— Bom dia, Sr. Traynor.
O segurança sai de seu cubículo. O lugar é à prova de intempéries, embora ali não haja intempéries das quais se proteger. Às vezes, Will imagina o que o segurança faz lá embaixo, de madrugada, olhando fixamente para a televisão do circuito interno e para os para-lamas reluzentes de carros de sessenta mil libras que jamais ficam sujos.
Ele enfia os ombros na jaqueta de couro.
— Como está o tempo lá fora, Mick?
— Horrível. Está chovendo canivetes.
Will para.
— É mesmo? Não dá para ir de moto?
Mick balança a cabeça.
— Não, senhor. A menos que tenha um bote inflável. Ou esteja querendo morrer.
Will olha para a moto e tira a jaqueta. Não importa o que Lissa pense, ele não é o tipo de homem que corre riscos desnecessários. Abre o porta-capacete da moto e guarda a jaqueta lá dentro, tranca o compartimento e joga as chaves para Mick, que pega-as precisamente com uma das mãos.
— Passe por debaixo da porta do meu apartamento, pode ser?
— Sem problemas. Quer que eu chame um táxi?
— Não. Não faz sentido nós dois nos molharmos.
Mick aperta o botão do portão automático e Will sai, acenando em agradecimento.
A manhã está escura e trovejante a seu redor, o tráfego no centro de Londres já está intenso e lento apesar de ainda ser sete e meia. Ele levanta o colarinho em volta do pescoço e segue a passos largos pela rua até o cruzamento, onde é mais provável que consiga um táxi. As ruas estão escorregadias por causa da água, a luz cinzenta se reflete nas poças da calçada.
Will amaldiçoa intimamente outros engravatados ao enxergá-los na beira do meio-fio. Desde quando Londres inteira acorda tão cedo? Todos tiveram a mesma ideia.
Enquanto pensa no melhor lugar para se posicionar, o celular toca. É Rupert.
— Estou chegando. Estou tentando pegar um táxi.
Ele vislumbra um táxi livre se aproximando pelo outro lado da rua e começa a ir em sua direção, desejando que ninguém mais o tenha visto. Um ônibus passa roncando, seguido de um caminhão que freia de maneira estridente, impedindo-o de ouvir o que Rupert diz.
— Não estou ouvindo, Rupe — grita, por sobre o barulho do trânsito. — Você vai precisar repetir. — Meio isolado em uma ilha de trânsito, com o tráfego fluindo por ele como uma correnteza, vê a luz alaranjada sobre o capô do táxi, indicando que o veículo está desocupado, e estica a mão livre, na esperança de que o motorista consiga vê-lo através da chuva forte.
— Você precisa ligar para Jeff em Nova York. Ele ainda está acordado, à sua espera. Tentamos falar com você na noite passada.
— Qual é o problema?
— Um empecilho legal. Duas cláusulas que eles estão protelando por causa de duas alíneas... assinatura... papéis. — A voz é abafada por um carro que passa, os pneus silvando na água.
— Não entendi.
O táxi o viu. Está reduzindo a marcha, esguichando um fino borrifo de água à medida que anda mais devagar do outro lado da rua. Will percebe que o homem mais adiante diminui o passo, desapontado, ao perceber que não alcançará o táxi a tempo. Ele tem uma íntima sensação de vitória.
— Escute, peça a Cally para colocar a papelada na minha mesa — grita. — Chego em dez minutos.
Olha para os dois lados, então baixa a cabeça ao dar os últimos passos para atravessar a rua em direção ao táxi, já com o destino “Blackfriars” na ponta da língua. A chuva se infiltra pelo espaço entre o colarinho e a camisa. Ele vai chegar ao escritório ensopado só por ter andado aquele pedacinho na chuva. Talvez precise mandar a secretária comprar outra camisa.
— E temos de resolver essa questão importante antes que Martin chegue...
Ele olha em direção ao chiado, o som rude e estridente de uma buzina. Vê a lustrosa lateral do táxi negro diante de si, o motorista já abaixando o vidro, e pelo canto do olho nota algo que não distingue direito, que está vindo para cima dele numa velocidade incrível.
Ele se vira e, nesse milésimo de segundo, percebe que a coisa vem em sua direção, que não há como sair da frente. Surpreso, abre a mão e o BlackBerry cai no chão. Ouve um grito que talvez seja seu. A última coisa que vê é uma luva de couro, um rosto dentro de um capacete, o choque nos olhos do homem refletindo o dele próprio. Há uma explosão quando tudo se parte em pedaços.
E então não há nada.

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