terça-feira, 29 de março de 2016

Capítulo 2

Não sou burra. Quero já deixar isso fora de cogitação. Mas é difícil não se sentir um pouco
deficiente no quesito “Células Cerebrais” quando se cresce com uma irmã mais jovem que não só passou para a minha turma na escola, mas que depois foi aprovada em uma série acima da minha.
Tudo o que é ajuizado ou inteligente Katrina foi a primeira a fazer, apesar de ser dezoito meses mais nova que eu. Cada livro que eu lia ela já tinha lido antes, tudo o que eu contava à mesa do jantar ela já sabia. É a única pessoa que conheço que gosta de fazer provas. Às vezes acho que me visto desse jeito porque a única coisa que Treena não consegue é combinar roupa. Ela é o tipo de garota que se veste de jeans e pulôver. Sua ideia de elegância é usar uma calça passada a ferro.
Meu pai me chama de “figura” porque costumo falar a primeira coisa que me vem à cabeça. Ele diz que sou como a tia Lily, que eu nunca conheci. É meio estranho ser sempre comparada a alguém que você nunca viu. Se eu descesse a escada de botas roxas, papai acenaria com a cabeça para mamãe e diria “Você se lembra da tia Lily com aquelas botas roxas, hein?”, e mamãe daria uma risadinha e depois riria abertamente, como se ela e papai partilhassem uma piada secreta. Minha mãe me chama de “singular”, que é uma maneira educada de não entender muito bem como me visto.
Mas, exceto por um curto período durante minha adolescência, eu jamais quis ser como Treena, nem como qualquer outra menina da escola. Até uns quatorze anos, eu preferia roupas de menino e atualmente prefiro o que me agrada, conforme o humor do dia. Não há por que querer parecer convencional. Sou pequena, de cabelos escuros e, segundo meu pai, tenho o rosto de um elfo. Não é a mesma coisa que ter uma “beleza élfica”. Não sou feia, mas acho que ninguém vai me chamar de bonita. Não tenho aquela coisa graciosa. Patrick diz que sou linda quando quer transar, mas nem sempre ele é tão transparente assim. Nós nos conhecíamos há quase sete anos.
Eu tinha vinte e seis anos e não sabia muito bem quem era. Até perder o emprego, não tinha sequer pensado nisso. Achava que provavelmente iria me casar com Patrick, teria filhos e moraria a algumas ruas de onde sempre morei. Exceto pelo gosto por roupas exóticas e pelo fato de ser um pouco baixa, não sou muito diferente de qualquer pessoa com que se possa cruzar na rua. Provavelmente, ninguém olharia para mim duas vezes. Uma garota comum, levando uma vida comum. Para mim, estava ótimo desse jeito.

* * *

— Numa entrevista de trabalho, você precisa ir de tailleur — insistira mamãe. — Hoje, as pessoas são informais demais.
— Porque usar risca de giz será fundamental se eu estiver dando comida na boca de um velho.
— Não seja espirituosa.
— Não posso comprar um terninho. E se eu não conseguir o emprego?
— Pode usar um meu, eu passo a ferro uma linda blusa e, uma vez na vida, não use o cabelo para cima naquelas... — e apontou para meu cabelo, que eu costumava deixar preso num nó preto de cada lado da cabeça — ... coisas que parecem da Princesa Leia. Apenas tente parecer uma pessoa normal.
Era melhor não discutir com mamãe. E eu tinha certeza de que papai recebera a recomendação de não comentar meus trajes quando saí de casa, nem meu andar esquisito naquela saia justa demais.
— Tchau, querida — disse ele, com os cantos da boca se repuxando. — Boa sorte. Você está muito... profissional.
O constrangedor não era eu usar um tailleur da minha mãe, ou que aquele fosse um modelo que esteve na moda no final dos anos oitenta, mas sim que a roupa estava um pouquinho pequena para mim. Eu podia sentir o cós cortando minha barriga e o paletó com duas fileiras de botões repuxando para um lado. Como papai diz a respeito de mamãe, um grampo de cabelo é mais gordo que ela.
Fiz a curta viagem de ônibus me sentindo levemente enjoada. Nunca tive uma entrevista de trabalho de verdade. Comecei a trabalhar no The Buttered Bun depois que Treena apostou que eu não conseguiria um emprego em apenas um dia. Entrei lá e simplesmente perguntei a Frank se ele precisava de um par extra de mãos. Aquele era o primeiro dia de funcionamento e ele pareceu quase cego de gratidão.
Agora, olhando para trás, não consigo nem me lembrar de ter falado com ele sobre dinheiro. Ele sugeriu um pagamento semanal, concordei, e uma vez por ano me dava um pequeno aumento, geralmente um pouco mais do que eu teria pedido.
O que, afinal, se pergunta numa entrevista de emprego? E se fizessem um teste prático com o tal idoso, como lhe dar comida, ou um banho, ou algo assim? Syed tinha dito que havia um cuidador do sexo masculino, que era responsável pelas “necessidades íntimas” (estremeci ao ouvir a expressão). As funções do segundo cuidador não estavam, segundo ele, “muito claras”. Imaginei-me limpando a baba da boca do idoso, e talvez perguntando aos gritos QUER UMA XÍCARA DE CHÁ?
Quando vovô estava se recuperando dos derrames, não conseguia fazer nada sozinho. Mamãe fazia tudo. “Sua mãe é uma santa”, dizia papai, o que entendi significar que ela limpava a bunda dele sem, no entanto, sair aos berros de casa por isso. Tenho certeza de que ninguém jamais me descreveu assim. Eu cortava a comida para vovô e lhe preparava chá, mas, quanto ao resto, não estava muito segura de ter os elementos necessários.
A Granta House, o endereço do emprego, ficava do outro lado do castelo Stortfold, perto das muralhas medievais, numa comprida trilha sem pavimentação que continha apenas quatro casas e a loja do National Trust, bem no meio da região turística. Passei por aquela casa milhares de vezes na vida sem jamais ter prestado atenção nela. Agora, ao passar pelo estacionamento do castelo e pela ferrovia em miniatura, que estavam vazios e desolados como só uma atração de verão pode estar em fevereiro, notei que a casa era maior do que eu imaginara, de tijolos vermelhos e fachada dupla, o tipo de casa que a gente só vê em exemplares antigos da revista Country Life enquanto espera ser atendida no médico.
Percorri a longa entrada para carros tentando não pensar que alguém me olhava da janela. Cruzar uma longa entrada para carros deixa você em desvantagem; isso a faz se sentir automaticamente inferior. Eu estava exatamente ponderando se deveria abaixar o topete do meu cabelo quando a porta se abriu e dei um pulo.
Uma mulher pouco mais velha que eu saiu para o vestíbulo. Ela usava calça branca, uma túnica que parecia ser de médico e carregava um casaco e uma pasta embaixo do braço. Ao passar por mim, deu um sorriso educado.
— E muito obrigada por ter vindo — disse uma voz lá de dentro. — A gente se fala. Ah. — Um rosto surgiu, de uma linda mulher de meia-idade, com cabelos num corte que parecia caro. Usava um terninho que, suponho, custava mais do que meu pai ganhava por mês.
— Você deve ser a Srta. Clark.
— Louisa. — Estendi a mão, como minha mãe insistiu que eu fizesse.
Meus pais tinham dito que hoje em dia os jovens nunca estendem a mão. Antigamente, você sequer sonhava com um “oie” ou, pior, em jogar um beijo no ar como forma de cumprimento. Aquela mulher não parecia alguém que recebesse bem um beijo no ar.
— Certo, pois não. Entre, por favor.
Ela retirou a mão da minha tão rápido quanto era humanamente possível, mas senti seus olhos sobre mim, como se ela já estivesse me avaliando.
— Vamos entrar? Conversaremos na sala. Meu nome é Camilla Traynor. — Ela parecia exausta, como se já tivesse dito as mesmas palavras várias vezes naquele dia.
Segui-a até uma sala enorme com janelas francesas que iam do chão ao teto. Pesadas cortinas drapejavam elegantemente de grossos varões de mogno e o piso era coberto de tapetes persas com motivos intrincados. Tudo cheirava a lustra-móveis e mobília antiga. Havia elegantes mesinhas laterais por todo canto, seus lustrosos tampos cobertos de caixas decorativas. Pensei por um instante onde é que, raios, os Traynor pousavam suas xícaras de chá.
— Então você veio porque viu o anúncio do Centro de Trabalho, certo? Sente-se, por favor.
Enquanto ela folheava os papéis em sua pasta, examinei disfarçadamente a sala. Pensei que a casa talvez devesse ser parecida com uma casa de repouso, tudo colocado no alto e com as superfícies muito limpas. Mas era como um daqueles hotéis assustadoramente caros, imerso numa riqueza antiga, cheio de coisas de alto valor sentimental e que já pareciam valiosas independentemente disso. Havia fotos em porta-retratos de prata em uma mesinha lateral, mas estavam longe demais para eu ver os rostos. Enquanto ela vasculhava seus papéis, eu me ajeitei na cadeira para tentar enxergar melhor.
E foi então que ouvi aquilo – o som inconfundível de pano se rasgando. Olhei para baixo e vi as duas partes de tecido que se juntavam na lateral da minha perna direita separadas violentamente, lançando para o alto fiapos de linha de seda que formavam uma franja deselegante. Senti meu rosto se inundar de cor.
— Então... Srta. Clark... tem alguma experiência no cuidado de pessoas tetraplégicas?
Virei-me para olhar a Sra. Traynor e me retorci de modo que o paletó cobrisse o máximo possível da saia.
— Não.
— Trabalha há muito tempo como cuidadora?
— Hum... na verdade, nunca trabalhei — disse eu, acrescentando, como se ouvisse a voz de Syed no meu ouvido: — Mas tenho certeza de que posso aprender.
— Sabe em que consiste a tetraplegia?
Vacilei.
— É quando... a pessoa fica presa a uma cadeira de rodas?
— Acredito que essa é uma forma de descrever. Há diversos graus, mas neste caso estamos falando da perda completa do uso das pernas e uso bastante limitado das mãos e dos braços. Isso incomoda a você?
— Bom, não tanto quanto incomoda a ele, é claro. — Esbocei um sorriso, mas o rosto da Sra. Traynor estava inexpressivo. — Desculpe... não quis...
— Sabe dirigir, Srta. Clark?
— Sim.
— Tem carteira de motorista sem infrações?
Anuí.
Camilla Traynor ticou algo em sua lista.
O rasgo estava aumentando. Eu podia vê-lo subir lenta e inexoravelmente pela minha coxa. Nessa altura, no momento em que eu me levantasse iria parecer uma dançarina de cassino de Las Vegas.
— Você está se sentindo bem? — A Sra. Traynor olhava para mim.
— Só estou com um pouco de calor. Posso tirar o paletó? — Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, arranquei o paletó num movimento gracioso e amarrei-o na cintura, tapando o rasgo na saia. — Bem quente — disse eu, sorrindo para ela. — O calor vindo lá de fora. A senhora sabe, não é?
Houve uma breve pausa e então a Sra. Traynor olhou de novo em sua pasta.
— Qual a sua idade?
— Vinte e seis.
— E ficou seis anos no emprego anterior.
— Sim. A senhora deve ter uma cópia da minha carta de recomendação.
— Hum... — A Sra. Traynor segurou a carta e deu uma olhadela. — Seu ex-empregador diz que você “é uma pessoa calorosa, falante e cheia de vida.”
— É, eu paguei para ele escrever isso.
De novo, aquela cara de paisagem.
Ai, drogapensei.
Era como se eu estivesse sendo avaliada. Não necessariamente de um jeito bom. De repente, a saia da minha mãe se tornou barata, a trama sintética brilhava na luz fraca.
Eu deveria ter usado minha calça mais simples e uma camiseta. Qualquer coisa, menos esse tailleur.
— Então, por que está saindo desse emprego onde é, claramente, tão valorizada?
— Frank, o proprietário, vendeu o café. É aquele que fica no final do castelo. The Buttered Bun. Ficava — corrigi. — Eu ficaria feliz em continuar lá.
A Sra. Traynor fez que sim com a cabeça, tanto porque achou desnecessário dizer mais alguma coisa quanto porque ela também adoraria que eu tivesse continuado por lá.
— O que exatamente pretende fazer da sua vida?
— Desculpe?
— Pretende ter uma carreira? Isso é um primeiro passo para algo mais? Tem algum sonho profissional que deseja realizar?
Olhei para ela, confusa.
Seria essa uma pergunta do tipo armadilha?
— Eu... realmente ainda não pensei muito sobre isso. Desde que perdi o emprego, eu apenas... — engoli em seco — Eu só quero voltar a trabalhar.
Pareceu uma resposta fraca. Que tipo de pessoa vai para uma entrevista de emprego sem sequer saber o que quer fazer? A expressão da Sra. Traynor sugeria que ela também pensava assim.
Ela pousou a caneta.
— Então, Srta. Clark, por que acha que devo selecioná-la em vez de, por exemplo, o candidato anterior, que tem vários anos de experiência com pacientes tetraplégicos?
Olhei para ela.
— Hum... honestamente? Não sei. — Tal comentário encontrou o silêncio, então acrescentei: — Acho que isso compete à senhora.
— Você não pode me dar uma única razão para contratá-la?
De repente, o rosto da minha mãe surgiu à minha frente. A ideia de voltar para casa com um tailleur destruído e outra entrevista fracassada era demais para mim. E aquele emprego pagava mais de nove libras a hora.
Sentei-me ereta por um instante.
— Bom... aprendo rápido, nunca fico doente, moro logo do outro lado do castelo e sou mais forte do que pareço... provavelmente forte o bastante para ajudar seu marido a se locomover...
— Meu marido? Não é com o meu marido que você trabalharia. É com meu filho.
— Seu filho? — Pisquei. — Hum... não tenho medo de trabalho duro. Tenho facilidade para lidar com todo tipo de gente e... faço um ótimo chá. — Comecei a tagarelar para preencher o silêncio. A ideia de que o tetraplégico era filho dela me derrubou. — Quer dizer, meu pai não acharia que essa é a melhor das referências. Mas minha experiência diz que não existe nada que não possa ser resolvido com uma boa xícara de chá...
Tinha algo um pouco estranho no jeito como a Sra. Traynor me olhava.
— Desculpe-me — gaguejei, ao perceber o que tinha dito. — Não estou querendo dizer que a coisa... a paraplegia... tetraplegia... do seu filho... possa ser resolvida com uma xícara de chá.
— Devo dizer, Srta. Clark, que o contrato é provisório. Deve durar, no máximo, seis meses. Por isso o salário é... proporcional. Queríamos atrair a pessoa certa.
— Acredite em mim, quando você trabalhou em turnos numa processadora de frangos, trabalhar na baía de Guantánamo fica interessante. — Ah, cale a boca, Louisa. Mordi o lábio.
Mas a Sra. Traynor pareceu não se alterar. Fechou a agenda.
— Meu filho, Will, sofreu um acidente de trânsito há quase dois anos. Ele precisa de cuidados intensivos, que são, em grande parte, realizados por um enfermeiro treinado. Há pouco tempo voltei a trabalhar e o cuidador precisaria estar aqui durante o dia para fazer companhia a ele, ajudá-lo a comer e beber, e geralmente é sensato ter um par extra de mãos, para garantir que ele não vá se machucar. — Camilla Traynor olhou para o colo. — É de extrema importância que Will tenha alguém aqui que compreenda essa responsabilidade.
Tudo o que ela disse, inclusive a maneira como destacou as palavras, parecia sugerir algum nível de idiotice da minha parte.
— Sei. — Fui pegando minha bolsa.
— Então, você gostaria do emprego?
Foi tão inesperado que pensei ter ouvido errado.
— O que a senhora disse?
— Precisamos que comece o mais rápido possível. O pagamento será semanal.
Fiquei um instante sem saber o que dizer.
— Prefere ficar comigo em vez... — comecei.
— O horário é puxado, das oito da manhã às cinco da tarde, às vezes mais. Não há exatamente um horário de almoço, mas quando Nathan, o enfermeiro do turno do dia, vier ajudá-lo com a refeição, você deverá ter meia hora livre.
— A senhora não precisaria de alguém... da área médica?
— Will recebe todo o cuidado médico que podemos oferecer. Queremos uma pessoa forte... e animada. Ele tem uma vida... complicada, e é importante que seja incentivado a... — Ela se interrompeu, de olhos fixos em alguma coisa do outro lado das janelas francesas. Por fim, voltou-se novamente para mim. — Bom, digamos que o bem-estar físico dele é tão importante quanto o mental. Entende?
— Acho que sim. Vou precisar... usar uniforme?
— Não. Definitivamente nada de uniforme. — Ela olhou minhas pernas. — Embora seja bom que use algo... menos revelador.
Olhei para onde meu paletó tinha escorregado, revelando uma generosa extensão de perna nua.
— Isso... desculpe. Rasgou. Na verdade, a saia não é minha.
Mas a Sra. Traynor parecia não estar mais ouvindo.
— Quando você começar, explico o que precisa fazer. No momento, Will não é a pessoa mais fácil de se lidar no mundo, Srta. Clark. O trabalho vai exigir tanto de sua atitude mental quanto das... habilidades profissionais que possa ter. Então, nós nos vemos amanhã?
— Amanhã? Você não quer... não quer que eu o conheça?
— Will não está num bom dia. Acho melhor fazermos isso depois.
Levantei-me, percebendo que a Sra. Traynor já esperava que eu saísse.
— Sim — concordei, puxando o paletó de mamãe por cima de mim. — Hum. Obrigada. Chego às oito amanhã.

* * *

Mamãe estava servindo batatas no prato de papai. Serviu duas, ele desviou o prato, pegando uma terceira e uma quarta batata da tigela. Ela o impediu de pegar mais, colocou as duas batatas extras de volta na tigela e deu uma batidinha nos nós dos dedos dele com a colher, quando fez menção de se servir outra vez. Sentados à pequena mesa estavam meus pais, minha irmã, Thomas, vovô e Patrick, que sempre vinha jantar às quartas-feiras.
— Papai — disse mamãe para vovô. — Quer que alguém corte as batatas para você? Treena, você pode cortar para ele?
Treena debruçou-se e começou a cortar a comida no prato de vovô com golpes hábeis. No outro extremo, ela já tinha feito a mesma coisa no prato de Thomas.
— Então, quão ruim está esse homem, Lou?
— Não deve ser muito grave, se eles o deixam solto com nossa filha — observou papai.
Atrás de mim, a TV estava ligada, então ele e Patrick podiam assistir ao jogo de futebol. De vez em quando, eles paravam, suas bocas interrompendo a mastigação enquanto acompanhavam um passe ou uma falta.
— Acho que é uma grande oportunidade. Ela vai trabalhar numa das mansões. Para uma boa família. Eles são bacanas, querida?
Na nossa rua, ser “bacana” significa qualquer pessoa sem um parente que tenha sido criminalmente acusado de perturbação da ordem pública.
— Acho que sim.
— Espero que você tenha agido de maneira educada. — Papai sorriu com malícia.
— Você chegou a conhecê-lo? — Treena se debruçou para impedir que Thomas derrubasse, com o cotovelo, seu suco no chão. — O aleijado? Como ele é?
— Vou conhecê-lo amanhã.
— Estranho. Você vai ficar o dia inteiro com ele. Nove horas. Vai vê-lo mais do que vê Patrick.
— O que não é difícil — falei.
Do outro lado da mesa, Patrick fingiu não ter escutado.
— Apesar disso, não vai ter de se preocupar com aquela velha história de assédio sexual, certo? — insinuou papai.
— Bernard! — exclamou minha mãe, ríspida.
— Eu apenas disse o que todo mundo está pensando. Esse é provavelmente o melhor patrão que você poderia arrumar para a sua namorada, hein, Patrick?
Do outro lado da mesa, Patrick sorriu. Estava ocupado em recusar batatas, apesar dos melhores esforços de mamãe. Ele estava no mês carboidrato zero, preparando-se para participar de uma maratona no começo de março.
— Sabe, eu estava pensando: você vai ter de aprender a linguagem dos sinais? Quer dizer, se ele não fala, como você vai saber o que ele quer?
— Ela não disse que ele não fala, mamãe.
Na verdade, eu não conseguia me lembrar do que a Sra. Traynor tinha dito. Ainda estava um pouco chocada por ter conseguido um emprego.
— Talvez ele fale por um daqueles aparelhos. Como aquele cientista. O dos Simpsons.
— Veado — disse Thomas.
— Não — disse papai.
— Stephen Hawking — disse Patrick.
— É você, é culpa sua— respondeu mamãe, olhando acusadoramente de Thomas para papai. Um olhar tão afiado que dava para cortar um bife. — Fica ensinando Thomas a falar coisas feias.
— Não sou, não. Não sei de onde ele está tirando isso.
— Veado — repetiu Thomas, olhando diretamente para seu avô.
Treena fez uma careta.
— Acho que eu ficaria louca se o homem falasse comigo por aqueles aparelhos sintetizadores de voz. Imagina só! Me-dá-um-copo-de-água — ela imitou.
Brilhante. Mas não o suficiente para impedi-la de embarrigar, como resmungava papai de vez em quando. Ela tinha sido a primeira integrante da nossa família a ir para a universidade, até que o nascimento de Thomas obrigou-a a largar o curso no último ano.
Papai e mamãe ainda têm esperança de que um dia ela traga fortuna para nossa família. Ou talvez trabalhe num lugar com mesa de recepção que não tenha uma tela de segurança feita de aço galvanizado ao redor. Qualquer um dos dois serviria.
— Por que andar de cadeira de rodas significa que ele tenha de falar como um Dalek? — perguntei.
— Mas você terá de se tornar próxima e íntima dele. No mínimo, limpar sua boca e dar de beber a ele, essas coisas.
— E daí? Não se trata de Engenharia Espacial.
— Falou a mulher que colocava a fralda de Thomas pelo avesso.
— Aconteceu só uma vez.
— Duas. E você só trocou a fralda dele três vezes.
Servi-me de ervilhas fingindo que estava mais confiante do que estava.
Mas, já no ônibus de volta para casa, os mesmos pensamentos começaram a zunir em minha cabeça. Sobre o que iríamos conversar? E se ele ficasse olhando para mim, a cabeça pendendo, o dia inteiro? Eu ficaria apavorada? E se eu não conseguisse entender o que ele queria? Eu era famosa por não cuidar das coisas, não tínhamos mais plantas em casa, nem bichos de estimação, depois das tragédias que foram o hamster, os bichos-paus e Randolph, o peixinho dourado. E quantas vezes aquela mãe empertigada ficaria por perto? Não gostava da ideia de ser vigiada o tempo todo. A Sra. Traynor parecia o tipo de mulher cujo olhar transformava mãos hábeis em um emaranhado de dedos.
— Então, Patrick, o que você acha disso tudo?
Patrick tomou um longo gole de água e deu de ombros.
Lá fora, a chuva batia nas vidraças e se fazia ouvir suavemente por cima do tinir de pratos e talheres.
— É um bom salário, Bernard. Melhor do que trabalhar à noite na fábrica de frangos, de qualquer jeito.
Houve um murmúrio geral de concordância na mesa.
— Bom, tem algum significado quando o melhor que se pode dizer da minha nova carreira é que é um trabalho melhor do que ficar levando carcaças de frango de um lado para outro dentro de um galpão — falei.
— Bom, enquanto isso, sempre dá para você entrar em forma e fazer algumas coisas de personal training com o Patrick aqui.
— Entrar em forma. Obrigada, papai. — Eu estava prestes a pegar mais uma batata e mudei de ideia.
— Ué, por que não? — Mamãe deu a impressão de que ia se sentar, todo mundo parou, mas não, ela se levantou de novo e foi ajudar vovô com o molho da carne. — Pode ser bom, tendo em vista seu futuro. Você sem dúvida tem o dom do papo.
— Ela tem o dom da papada. — Papai riu.
— Eu consegui um emprego — argumentei. — Que paga mais que o anterior, se me permitem lembrar.
— Mas é apenas temporário — interrompeu Patrick. — Seu pai tem razão. Você deveria pensar em ficar em forma enquanto isso. Você poderia ser uma boa personal trainer, se se empenhasse um pouco.
— Eu não quero ser personal trainer. Não gosto... de toda aquela... pulação. — Movi os lábios em um xingamento mudo para Patrick, que riu com deboche.
— O que Lou quer é um emprego onde possa ficar de pés para cima e assistir à TV enquanto um velho paralítico se alimenta com um canudinho — disse Treena.
— É. Porque arrumar dálias murchas em jarros com água exige muito esforço mental e físico, não é, Treen?
— Estamos brincando com você, querida. — Papai levantou sua xícara de chá. — É ótimo que tenha conseguido um trabalho. Já estamos orgulhosos de você. E aposto que quando puser seus pezinhos naquela mansão, aqueles viados não vão mais querer largar de você.
— Viados — repetiu Thomas.
— Não fui eu — disse papai, mastigando, antes que mamãe pudesse abrir a boca.

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