terça-feira, 29 de março de 2016

Capítulo 3

— Aqui é o anexo. Eram as estrebarias, mas percebemos que serviria um pouco melhor ao Will do
que a casa, já que fica tudo em apenas um andar. Este é o quarto de hóspedes, pois assim Nathan pode passar a noite aqui caso seja necessário. No começo, precisávamos sempre de alguém.
A Sra. Traynor andava rápido pelo corredor, gesticulando de uma porta a outra, sem olhar para trás, os saltos estalando no piso de pedras. Parecia haver uma expectativa de que eu fosse parar.
— As chaves do carro ficam aqui. Incluí você no nosso seguro. Estou confiando que as informações que você me deu estejam corretas. Nathan pode lhe mostrar como funciona a rampa de acesso. Basta ajudar Will a ficar na posição correta que o carro faz o restante. Mas... no momento ele não está desesperadamente ávido para ir a lugar nenhum.
— Está um pouco frio — falei.
A Sra. Traynor pareceu não ouvir.
— Você pode preparar seu chá e seu café na cozinha. Mantenho o armário abastecido. O banheiro é por aqui...
Ela abriu a porta e olhei para o guincho de metal e plástico brancos que estava em cima da banheira. Havia uma área molhada sob o chuveiro, com uma cadeira de rodas dobrada ao lado. No canto, um armário com porta de vidro mostrava pilhas arrumadas de fardos de papel devidamente embalados. Não sabia para o que serviam, mas tudo ali exalava um leve cheiro de desinfetante.
A Sra. Traynor fechou a porta e virou-se brevemente para me olhar.
— Devo reiterar que é muito importante que Will esteja sempre acompanhado. A cuidadora anterior sumiu por várias horas para consertar o próprio carro e Will... se machucou durante a ausência. — Ela engoliu em seco, como se ainda estivesse traumatizada pela lembrança.
— Não vou a lugar algum.
— É lógico que você precisa de... intervalos. Só quero deixar claro que ele não pode ficar sozinho por mais de, digamos, dez ou quinze minutos. Se houver uma emergência, use o interfone, já que meu marido Steven deve estar em casa, ou ligue para o meu celular. Se você precisar sair, gostaria que avisasse com a maior antecedência possível. É difícil arrumar alguém para cobrir ausências.
— Não é fácil mesmo.
A Sra. Traynor abriu o armário do corredor. Ela falou como alguém que recita um discurso bem ensaiado. Pensei brevemente em quantos cuidadores já tinham tido antes de mim.
— Se Will estiver ocupado, seria bom que você fizesse o básico para manter o anexo limpo e organizado. Lavar a roupa de cama, passar um aspirador por aí, essas coisas. O material de limpeza fica embaixo da pia. Talvez ele não queira você por perto o tempo todo. Você e ele têm de encontrar sua própria forma de se relacionarem.
A Sra. Traynor olhou as minhas roupas como se as visse pela primeira vez. Eu estava com o colete peludo que papai diz que me deixa parecida com um avestruz. Tentei sorrir. Pareceu um esforço.
— Obviamente, espero que vocês consigam... se entender bem. Seria ótimo se ele pudesse pensar em você como uma amiga em vez de uma profissional paga para isso.
— Certo. O que ele... hum... gosta de fazer?
— Ele assiste a filmes. Às vezes, ouve rádio ou música. Tem uma daquelas coisas digitais. Se você colocar perto da mão dele, ele consegue, geralmente, operar sozinho. Tem um pouco de movimento nos dedos, embora sinta dificuldade de segurar.
Fui me alegrando. Se ele gostava de música e cinema, claro que poderíamos encontrar algo em comum, não? Imaginei de repente eu e aquele homem rindo de alguma comédia hollywoodiana, eu passando o aspirador pelo quarto enquanto ele ouvia música. Talvez fosse dar certo. Talvez acabássemos amigos. Nunca tive um amigo deficiente físico, exceto por David, amigo de Treen, que era surdo, mas que ficava furioso se alguém sugerisse que isso era uma deficiência.
— Tem alguma pergunta?
— Não.
— Então vamos entrar e apresentar vocês. — Ela olhou para o relógio de pulso. — Nathan deve ter terminado de vesti-lo.
Hesitamos do lado de fora da porta e a Sra. Traynor bateu.
— Oi, estão aí? Will, trouxe a Srta. Clark para conhecer você.
Não houve resposta.
— Will? Nathan?
Um forte sotaque neozelandês.
— Ele está arrumado, Sra. T.
Ela abriu a porta. A sala do anexo era ilusoriamente enorme, pois uma das paredes era feita totalmente de portas de vidro que se abriam para o campo. Uma lareira crepitava baixinho no canto e um sofá bege com almofadas cobertas por uma manta de lã ficava de frente para uma grande TV de tela plana. O clima do ambiente era elegante e tranquilo: como o apartamento de um escandinavo solteiro.
No meio da sala havia uma cadeira de rodas preta, com assento e encosto forrados por pele de carneiro. Um homem solidamente forte, de jaleco sem gola, estava abaixado, arrumando os pés de outro no apoio da cadeira de rodas. Assim que entramos no quarto, o homem na cadeira olhou por baixo de uma cabeleira despenteada. Seus olhos encontraram os meus e, após uma pausa, ele soltou um gemido horripilante. Então, sua boca se retorceu e ele deixou sair outro grito fantasmagórico.
Senti sua mãe se empertigar.
— Will, pare com isso!
Ele nem olhou para ela. Outro som pré-histórico emergiu de algum lugar próximo a seu peito. Era um som terrível, agonizante. Tentei não vacilar. O homem fez uma careta, sua cabeça balançou e afundou em seus ombros enquanto ele começou a me encarar através de feições distorcidas. Parecia grotesco e vagamente irritado. Percebi que na mão em que eu segurava minha bolsa os nós dos meus dedos ficaram brancos.
— Will! Por favor. — Havia um leve tom de histeria na voz de sua mãe. — Por favor, não faça isso.
Meu Deus, pensei. Não estou pronta para isso. Engoli em seco, com esforço. O homem continuava a me encarar. Ele parecia esperar que eu fizesse alguma coisa.
— Eu... eu sou Lou. — Minha voz, incomumente trêmula, quebrou o silêncio. Pensei por um breve momento se estendia a mão, então, me lembrando de que ele não poderia segurá-la, dei um leve aceno. — Diminutivo de Louisa.
Então, para meu espanto, suas feições se desanuviaram e sua cabeça se endireitou sobre o pescoço.
Will Traynor me olhou firmemente, com o mais leve dos sorrisos tremulando em seu rosto.
— Bom dia, Srta. Clark — disse ele. — Soube que é minha nova guarda-costas.
Nathan tinha terminado de arrumar o descanso dos pés na cadeira de rodas. Balançou a cabeça ao se levantar.
— Você é um homem perverso, Sr. T. Muito perverso. — Ele sorriu com deboche e esticou uma manzorra, que eu apertei flacidamente. Nathan transpirava um ar de imperturbabilidade. — Acredito que você tenha acabado de assistir à melhor imitação de Christy Brown, de Meu pé esquerdoVocê vai se acostumar com ele. Ele late mais do que morde.
A Sra. Traynor segurava com os delicados dedos brancos o crucifixo em seu pescoço. Puxava-o de um lado para outro na fina corrente dourada, um tique nervoso. Sua expressão estava dura.
— Vou deixar vocês se entenderem. Podem usar o interfone se precisarem de ajuda. Nathan vai contar sobre a rotina de Will e o equipamento que ele usa.
— Estou aqui, mãe. Você não precisa falar como se eu não estivesse. Meu cérebro não está paralisado. Ainda.
— Sim, bom, se você vai se portar de maneira desagradável, Will, acho que é melhor a Srta. Clark falar direto com Nathan. — Percebi que a mãe não olhava para ele quando falava. Manteve seu olhar no chão, a uns três metros além de onde ele estava. — Vou trabalhar de casa hoje. Apareço na hora do almoço, Srta. Clark.
— Certo. — Minha voz saiu como um grasnado.
A Sra. Traynor sumiu. Ficamos calados enquanto ouvíamos seus passos ligeiros sumirem pelo corredor em direção à casa principal.
Nathan então rompeu o silêncio.
— Will, você se importa se eu falar de seus remédios com a Srta. Clark? Quer assistir à TV? Ouvir música?
— Rádio, estação quatro, por favor.
— Claro.
Fomos para a cozinha.
— A Sra. T. disse que você não tem muita experiência com tetraplégicos, certo?
— É.
— Certo. Vamos começar com as coisas razoavelmente simples hoje. Aqui tem uma pasta com praticamente tudo o que você precisa saber a respeito das rotinas de Will e com todos os telefones de emergência. Sugiro que você leia quando tiver um tempo livre. Imagino que vá ter algum.
Nathan pegou uma chave de seu cinto e abriu um armário cheio de caixas e frasquinhos plásticos de remédios.
— Certo. Isso é mais a minha parte, mas você precisa saber onde está tudo, para o caso de emergências. Há um quadro de horários na parede, então você pode verificar quando e o que ele toma por dia. Qualquer remédio a mais que você der, marque aqui — ele mostrou —, mas é melhor checar tudo com a Sra. T., pelo menos por enquanto.
— Não sabia que eu teria de lidar com remédios.
— Não é difícil. Ele sabe quase tudo o que toma. Mas pode precisar de uma pequena ajuda para engolir. Costumamos usar esse copo especial. Você pode amassar com este pilão de mármore e colocar em algum líquido.
Peguei uma das embalagens. Acho que nunca tinha visto tantos remédios fora de uma farmácia.
— Certo. Ele toma dois remédios para pressão: este, para baixar na hora de dormir; este, para subir quando acorda. Estes, ele usa quase sempre para controlar os espasmos musculares: você precisa dar um no meio da manhã e outro no meio da tarde. Ele não acha esses difíceis de engolir, porque são pequenos e revestidos. Estes são para espasmos da bexiga, e estes são para refluxo ácido. Às vezes, ele precisa tomar após a refeição, se sentir desconforto. Este é o anti-histamínico da manhã, e estes são os sprays nasais, mas costumo ministrá-los antes de ir embora, então você não precisa se preocupar. Ele pode tomar paracetamol se estiver com dor, e também tem essa pílula para dormir, que ele toma de vez em quando, mas que costuma deixá-lo mais irritado durante o dia, por isso procuramos restringir.
“Estes”, Nathan continuou, mostrando outro frasco, “são os antibióticos que toma a cada duas semanas para a troca do cateter. Eu mesmo dou, a menos que não esteja aqui, nesse caso, deixarei instruções claras. São muito fortes. Temos caixas com luvas de borracha, se você precisar limpá-lo por algum motivo. Tem também essa pomada, para o caso de ele ter escaras, mas ele está muito bem desde que chegou o colchão de ar.”
Enquanto eu estava ali parada, Nathan tirou do bolso uma chave e me entregou.
— Esta é a chave reserva — disse. — Não deve ser dada a ninguém. Nem mesmo a Will, certo? Proteja-a como se fosse sua vida.
— É muita coisa para lembrar. — Engoli em seco.
— Está tudo escrito. Por hoje, você só precisa lembrar dos antiespasmódicos. Aqueles ali. O número do meu celular está aqui, se precisar falar comigo. Quando não estou aqui, fico estudando, então queria pedir para não me ligar muito, mas fique à vontade até se sentir segura.
Olhei bem para a pasta na minha frente. Era como se eu fosse fazer uma prova para a qual não estudei.
— E se ele precisar... ir ao banheiro? — Pensei no aparelho de içar. — Não sei se consigo, você sabe, erguê-lo. — Tentei fazer com que meu rosto não transparecesse pânico.
Nathan balançou a cabeça.
— Não precisa fazer nada disso. O cateter cuida do assunto. Na hora do almoço estou aqui para trocar tudo. Sua função não envolve nenhum esforço físico.
— Qual é a minha função?
Nathan estudou o chão antes de me encarar.
— Tentar animá-lo um pouco? Ele é... ele é meio mal-humorado. O que é compreensível, dadas... as circunstâncias. Mas você vai precisar ser um pouco casca-grossa. Aquela pequena cena cômica da manhã é o jeito que ele tem de desestabilizá-la.
— Por isso o salário é tão bom?
— Ah, sim. Não existe almoço grátis, não é? — Nathan me deu um tapinha no ombro. Senti meu corpo reverberar com o gesto. — Ah, ele é legal. Não precisa pisar em ovos com Will. — Ele hesitou. — Gosto dele.
Ele disse isso como se fosse a única pessoa que gostava de Will.
Fui atrás dele até a sala. A cadeira de Will Traynor tinha se movido até a janela e ele estava de costas para nós, olhando para fora, ouvindo algo no rádio.
— Acabei, Will. Quer alguma coisa antes que eu saia?
— Não. Obrigado, Nathan.
— Deixo você sob os eficientes cuidados da Srta. Clark, então. A gente se vê no almoço, companheiro.
Com uma crescente sensação de pânico, vi o simpático cuidador vestir seu casaco.
— Divirtam-se, pessoal. — Nathan piscou para mim e então se foi.
Fiquei no meio da sala, mãos enfiadas nos bolsos, incerta sobre o que fazer. Will Traynor continuava a olhar pela janela, como se eu não estivesse ali.
— Quer que eu lhe prepare uma xícara de chá? — perguntei, enfim, quando o silêncio ficou insuportável.
— Ah. Sim. A garota que faz chá para viver. Estava pensando quanto tempo ia demorar para você mostrar suas habilidades. Não. Não, obrigado.
— Café, então?
— Nada de bebidas quentes para mim agora, Srta. Clark.
— Pode me chamar de Lou.
— Isso vai ajudar?
Pisquei, minha boca ligeiramente aberta. Fechei-a. Papai sempre dizia que aquilo me fazia parecer mais boba do que eu realmente era.
— Bom... posso lhe preparar alguma coisa?
Ele virou-se para mim. Seu rosto estava coberto por uma barba por fazer de várias semanas e os olhos eram indecifráveis. Ele virou-se para o outro lado.
— Vou... — dei uma olhada no cômodo. — Vou ver se tem alguma coisa para lavar, então.
Saí da sala, o coração batendo forte. Na segurança da cozinha, saquei meu celular e digitei uma mensagem de texto para minha irmã.

É horrível. Ele me odeia.

A resposta veio em segundos.

Você só está aí há uma hora, sua covarde! Mãe e pai muito preocupados com dinheiro. Segura a onda e pense em quanto ganha por hora. Bj

Fechei o celular com um estrépito e suspirei. Fui até o cesto de roupa suja no banheiro, tentando calcular meio quilo de roupa, e fiquei alguns minutos verificando as instruções da máquina de lavar. Não queria desprogramar nem fazer qualquer coisa para Will ou a Sra. Traynor me olharem de novo como se eu fosse idiota. Liguei a máquina e fiquei lá, pensando o que mais poderia legitimamente fazer. Tirei o aspirador de pó do armário e limpei todo o corredor, mais os dois quartos, pensando que, se meus pais pudessem me ver, insistiriam para tirar uma foto comemorativa. O quarto extra estava quase vazio, como um quarto de hotel. Desconfiei de que Nathan não costumava dormir lá. Pensei que eu provavelmente não poderia culpá-lo.
Hesitei do lado de fora do quarto de Will Traynor, e enfim concluí que o local precisava ser aspirado como qualquer outro lugar da casa. Uma das paredes era coberta por uma estante embutida com uns vinte porta-retratos.
Enquanto aspirava ao redor da cama, eu me permiti dar uma olhada neles. Havia um homem saltando de bungee jump de um abismo, os braços abertos como uma estátua do Cristo. Uma foto de um homem que poderia ser Will numa espécie de selva, e outra dele em meio a um grupo de amigos bêbados. Os homens estavam de smoking, uns com as mãos nos ombros dos outros.
Lá estava ele numa rampa de esqui, ao lado de uma garota de óculos escuros e longos cabelos louros. Parei para vê-lo melhor de óculos de esqui. Estava com o rosto barbeado e, mesmo na luz intensa, exibia aquela luminosidade cara que os endinheirados conseguem ter ao saírem de férias três vezes ao ano. Tinha ombros largos e fortes, o que dava para ver mesmo sob o casaco de neve. Coloquei a foto com cuidado na mesa e continuei a aspirar ao redor da cabeceira da cama. Finalmente, desliguei o aspirador e comecei a enrolar o fio. Quando me abaixei para tirar o plugue da tomada da parede, notei um movimento pelo canto do olho e pulei, dando um gritinho. Will Traynor me olhava da porta.
— Estação de esqui de Courchevel. Há dois anos e meio.
Corei.
— Desculpe. Eu estava só...
— Você estava só olhando as minhas fotos. Pensando como deve ser horrível ter tido uma vida assim e depois virar um aleijado.
— Não. — Corei ainda mais intensamente.
— O restante das minhas fotos estão na gaveta de baixo, caso você fique de novo muito curiosa — disse ele.
Então, com um leve zunido, a cadeira de rodas virou à direita e sumiu.

* * *

A manhã resolveu durar anos. Eu não me lembrava da última vez em que as horas e os minutos tinham se esticado tão interminavelmente. Tentei encontrar o máximo de ocupações e entrei na sala tão raramente quanto possível, sabendo que estava sendo covarde, mas não me importando com isso.
Às onze, levei água num copo especial, parecido com um copo de treinamento para crianças, e o medicamento antiespasmódico, como Nathan tinha recomendado.
Coloquei o comprimido na língua dele e mostrei o copo, como Nathan me ensinara. O copo era descorado, de plástico opaco, o tipo da coisa que Thomas tinha usado, só que sem a estampa de Bob, o Construtor. Will engoliu com certo esforço e fez sinal para que eu o deixasse sozinho.
Tirei o pó de algumas prateleiras que não precisavam realmente ser espanadas e pensei em limpar umas janelas. O anexo estava silencioso, exceto pelo zunido baixo da TV na sala onde Will estava. Não me senti segura o suficiente para ligar o rádio na cozinha. Tinha a impressão de que ele ia fazer alguma crítica ríspida sobre a minha escolha.
Ao meio-dia e meia, Nathan chegou, trazendo consigo o ar frio da rua, e levantou uma sobrancelha.
— Tudo bem? — perguntou.
Poucas vezes na vida fiquei tão contente de ver alguém.
— Sim.
— Certo. Você pode parar meia hora, agora. O Sr. T. e eu precisamos fazer algumas coisas nesse horário.
Praticamente corri para pegar meu casaco. Não tinha planejado sair para almoçar, mas quase desmaiei de alívio por deixar aquela casa. Levantei a gola do casaco, pendurei a bolsa no ombro e caminhei a passos ligeiros pelo caminho para carros, como se realmente tivesse algum lugar para onde ir. Na verdade, apenas andei pelas ruas ao redor durante meia hora, a respiração formando nuvens quentes no meu cachecol bem enrolado.
Depois que o The Buttered Bun fechou, não existiam mais cafés naquele ponto da cidade. O castelo estava abandonado. O lugar mais próximo em que se podia comer era um pub elegante, o tipo de lugar onde eu provavelmente não conseguiria pagar uma bebida, muito menos um almoço rápido. Todos os carros no estacionamento eram enormes e caros, com placas novas.
Parei no estacionamento do castelo, certificando-me de que não seria vista da Granta House, e liguei para minha irmã.
— Oi.
— Você sabe que não posso falar no trabalho. Você não largou o emprego, largou?
— Não. Só precisava ouvir uma voz amigável.
— O homem é tão ruim assim?
— Treen, ele me odeia. Ele me olha como se eu fosse uma coisa que o gato trouxe na boca. E ele nem toma chá. Estou fugindo dele.
— Não acredito que eu esteja ouvindo isso.
— O quê?
— Fale com ele, pelo amor de Deus. Claro que ele se sente infeliz. Está preso a uma maldita cadeira de rodas. E você certamente está sendo inútil. Apenas fale com ele. Conheça-o. Qual a pior coisa que pode acontecer?
— Não sei... não sei nem se aguento.
— Não vou contar para mamãe que você desistiu do emprego depois de apenas metade do expediente. Não vão lhe pagar nada, Lou. Você não pode fazer isso. Não podemos deixar que você faça isso.
Ela estava certa. Percebi que odiava minha irmã.
Houve um breve silêncio. A voz de Treen ficou estranhamente conciliatória. Aquilo era mesmo preocupante. Significava que ela sabia que eu estava mesmo no pior emprego do mundo.
— Olhe, são só seis meses — disse ela. — Fique os seis meses, tenha algo útil no seu currículo e pode conseguir um emprego de que realmente goste. E, ei... veja as coisas por esse lado, pelo menos você não está trabalhando no turno da noite na fábrica de frango, certo?
— Noites na fábrica de frango parecem férias se comparadas com...
— Estou indo, Lou. Nos vemos depois.

* * *

— Gostaria de ir a algum lugar esta tarde? Podíamos ir de carro, se você quiser.
Nathan tinha saído fazia quase meia hora. Eu tinha prolongado a lavagem das xícaras de chá pelo tempo máximo humanamente possível e achava que, se passasse mais uma hora naquela casa silenciosa, minha cabeça explodiria.
Ele virou-se para mim.
— O que você tem em mente?
— Não sei. Dar uma volta pelo campo?
Eu estava fazendo uma coisa que costumo fazer às vezes: fingir que sou Treena. Ela é uma pessoa totalmente calma e competente, por isso ninguém jamais se irrita com ela. Aos meus ouvidos, eu soava profissional e animada.
— O campo — ele disse, como se considerasse a ideia. — Para vermos o quê? Árvores? Céu?
— Não sei. O que você costuma fazer?
— Eu não faço nada, Srta. Clark. Não posso mais fazer nada. Eu fico sentado. Apenas existo.
— Bom — falei. — Disseram que você tem um carro adaptado para cadeira de rodas, não?
— E você acha que vai parar de funcionar se não for usado todos os dias?
— Não, mas eu...
— Está dizendo que eu devia sair?
— Eu só pensei...
— Que uma voltinha de carro me faria bem? Um pouco de ar fresco?
— Estou apenas tentando...
— Srta. Clark, minha vida não vai melhorar muito se eu der uma volta pelos campos de Stortfold. — Ele virou-se para o outro lado.
A cabeça estava enfiada nos ombros e me perguntei se ele estava se sentindo bem. Não era hora de perguntar. Fiquei calada.
— Quer que eu traga o seu computador?
— Acha que eu podia participar de um bom grupo virtual de tetraplégicos? Tetra-Nós? O Clube das Rodas de Metal?
Respirei fundo e tentei fazer com que minha voz soasse confiante.
— Certo... bom... já que vamos ficar o tempo todo juntos, talvez pudéssemos saber um pouco um do outro...
Alguma coisa no rosto dele me fez vacilar. Olhava firme para a parede, com um tremor no maxilar.
— É que... é muito tempo para ficar com alguém. O dia inteiro — prossegui. — Talvez, se você puder me contar um pouco o que quer fazer, do que gosta, então eu poderia... garantir que as coisas sejam como você gosta?
Desta vez, o silêncio foi doloroso. Ouvi minha voz ser lentamente engolida pela ausência de sons, e não sabia o que fazer com as mãos. Treena e seu jeito competente sumiram.
Finalmente, a cadeira de rodas zuniu e ele virou-se lentamente para mim.
— Eis o que sei a seu respeito, Srta. Clark. Minha mãe disse que você é falante. — Ele disse isso como se fosse um incômodo. — Vamos combinar uma coisa? Daqui por diante, pode ser desfalante?
Engoli em seco, sentindo o rosto em chamas.
— Claro — respondi, quando consegui falar. — Estou na cozinha. Se  quiser alguma coisa, chame.

* * *

— Você não pode desistir.
Eu estava atravessada na cama, com as pernas esticadas na parede, como eu fazia quando adolescente. Estava assim desde o jantar, o que não era comum para mim.
Desde que Thomas nasceu, ele e Treena passaram para o quarto maior e eu fiquei no quartinho, que era tão pequeno que dava claustrofobia se alguém ficasse lá mais de meia hora.
Mas eu não queria ficar no andar de baixo com mamãe e vovô porque ela ficava me olhando preocupada e dizendo coisas como “vai melhorar, querida” e “no primeiro dia, nenhum emprego é maravilhoso” como se ela tivesse tido um único emprego nos últimos vinte anos. Eu me sentia culpada. E não tinha feito nada para isso.
— Eu não disse que ia desistir.
Treena entrou no quartinho sem bater, como fazia todos os dias, embora eu sempre tivesse de bater de leve no quarto dela, para o caso de Thomas estar dormindo.
— Eu podia estar nua. Você podia pelo menos avisar antes de entrar.
— Já vi coisas piores. Mamãe acha que você vai pedir demissão.
Escorreguei as pernas pela parede e me sentei na cama.
— Céus, Treen. Aquele trabalho é pior do que pensei. Ele é péssimo.
— É paralítico. Claro que se sente péssimo.
— Não, ele é sarcástico e mesquinho comigo. Toda vez que digo ou sugiro alguma coisa, ele me olha como se eu fosse idiota, ou diz algo que me faz sentir com dois anos de idade.
— Provavelmente, você disse algo idiota. Vocês precisam apenas se acostumar um com o outro.
— Não disse nada idiota. Eu tomo muito cuidado. Quase só digo “quer dar uma volta de carro?” ou “quer uma xícara de chá?”
— Bom, vai ver que no começo ele é assim com todo mundo para ver até onde a pessoa aguenta. Aposto que ele já teve dezenas de cuidadoras.
— Ele não quer nem que eu fique no mesmo cômodo que ele. Não sei se aguento, Katrina. Não sei mesmo. Sinceramente... só indo lá para você entender.
Treena não disse nada, ficou me olhando. Levantou-se e olhou a porta, como se quisesse conferir se tinha alguém no andar.
— Estou pensando em voltar à faculdade — ela disse, por fim.
Meu cérebro levou alguns segundos para registrar a mudança de assunto.
— Ah, meu Deus. Mas... — falei.
— Vou pedir um empréstimo para pagar a anuidade. E posso conseguir algum benefício especial porque tenho Thomas e a faculdade oferece preços menores porque eles... — Ela deu de ombros, um pouco constrangida. — Eles dizem que posso me destacar. Alguém largou o curso de administração, então eles me aceitam no começo do próximo semestre letivo.
— E Thomas?
— O campus tem uma creche. Passaremos a semana nos apartamentos subsidiados e voltaremos para cá nos fins de semana.
— Ah.
Notei que ela me observava. Eu não sabia o que fazer com a minha cara.
— Estou louca para usar a cabeça de novo. Fazer arranjos de flores está acabando comigo. Quero estudar. Quero melhorar de vida. E não aguento minhas mãos sempre geladas por causa da água.
Olhamos as duas para as mãos dela, que estavam rosadas mesmo no calor tropical do interior da casa.
— Mas...
— Sim. Não vou trabalhar, Lou. Não vou dar nada para mamãe. Pode... pode ser até que eu precise da ajuda deles. — Nesse ponto, ela pareceu bastante desconfortável. A expressão, quando olhou para mim, era quase de desculpas.
No andar de baixo, mamãe ria de alguma coisa na TV. Falou com o vovô. Ela costumava explicar a história para ele, mesmo que sempre disséssemos que não precisava. Não consegui falar. As palavras de minha irmã foram ganhando sentido de forma lenta, mas inexorável. Eu me sentia como uma vítima da máfia vendo o concreto endurecer em torno de seus tornozelos.
— Tenho de fazer isso, Lou. Quero mais para Thomas, mais para nós dois. O único jeito de conseguir alguma coisa é voltando a estudar. Não tenho um Patrick. Nem sei se um dia terei, já que ninguém tem o menor interesse por mim depois que tive Thomas. Preciso fazer o melhor sozinha.
Como eu não disse nada, ela acrescentou:
— Para mim e para Thomas.
Concordei com a cabeça.
— Lou? Por favor?
Nunca vi minha irmã assim. Fiquei muito sem jeito. Levantei a caneca e dei um sorriso. Quando minha voz surgiu, não parecia minha.
— Bom, é como você diz. É só questão de se acostumar com ele. É sempre difícil nos primeiros dias, não é?

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