terça-feira, 29 de março de 2016

Capítulo 6

A neve caiu tão de repente que saí de casa sob um céu azul-claro e menos de meia hora depois passei por um castelo que mais parecia um bolo  corado, coberto por uma grossa camada de neve branca.
Caminhei com dificuldade pela entrada da garagem, os passos abafados pela neve e os dedos já dormentes por causa do frio, tremendo no meu casaco de seda chinês, fino demais. Um redemoinho de flocos brancos surgiu de um infinito céu cinza-aço e quase escondeu a Granta House, encobrindo os sons e desacelerando o ritmo do mundo de forma nada natural. Atrás das cercas vivas bem-aparadas, os carros passavam com cautela redobrada, os pedestres nas calçadas escorregavam e soltavam gritinhos. Puxei o cachecol sobre o nariz e desejei estar vestindo algo mais adequado para aquele clima do que sapatilhas e um minivestido de veludo.
Para minha surpresa, não foi Nathan quem abriu a porta, mas o pai de Will.
— Ele está de cama — disse, olhando do vestíbulo. — Não está muito bem. Não sei se devo chamar o médico.
— Onde está Nathan?
— É sua manhã de folga. Claro que tinha de ser hoje. A maldita agência de enfermagem veio e foi embora em seis segundos. Se continuar nevando assim, não sei o que faremos mais tarde. — Ele deu de ombros, como se essas coisas não tivessem jeito mesmo, e sumiu pelo corredor, parecendo aliviado por não ser mais o responsável. — Você sabe do que ele precisa, não? — falou, por cima do ombro.
Tirei meu casaco e as sapatilhas, pois sabia que a Sra. Traynor estava no tribunal (ela anotava as datas em um calendário na cozinha do anexo). Coloquei as meias molhadas em cima de um aquecedor para secar. Um par de meias de Will estava no cesto de roupas lavadas, então calcei-o. As meias dele pareciam ridiculamente grandes em mim, mas era uma maravilha sentir os pés aquecidos e secos. Will não respondeu quando o chamei, então fiz um suco, bati baixinho na porta do quarto e enfiei a cabeça. Na meia-luz, só pude distinguir uma forma embaixo do edredom. Estava dormindo.
Dei um passo para trás, fechei a porta e iniciei as tarefas matinais.
Minha mãe parecia ter um prazer quase físico em arrumar a casa. Já fazia um mês que eu aspirava e limpava diariamente o anexo da Granta House e continuava sem saber qual era a graça. Eu desconfiava que em nenhum momento da minha vida deixaria de desejar que outra pessoa fizesse aquilo no meu lugar.
Mas num dia como aquele, com Will confinado na cama e o mundo parecendo estagnado lá fora, percebi que havia uma espécie de prazer meditativo em ir de um lado ao outro do anexo. Enquanto tirava o pó e lustrava os móveis, levei o rádio comigo por todos os cômodos, em volume baixo para não incomodar Will. De vez em quando, enfiava a cabeça na porta para conferir se estava respirando e só à uma da tarde comecei a ficar preocupada.
Enchi o cesto de lenha e reparei que vários centímetros de neve haviam se acumulado no chão. Fiz outro suco fresco para Will e bati na porta do quarto. Bati de novo, dessa vez mais alto.
— Sim? — Sua voz estava rouca, como se eu o tivesse acordado.
— Sou eu. — Como ele não respondeu, acrescentei: — Louisa. Posso entrar?
— Pode, não estou fazendo a dança dos sete véus.
O quarto estava escuro, tinha as cortinas fechadas. Entrei e esperei meus olhos se adaptarem à escuridão. Will estava deitado de lado, com um braço dobrado à frente como se tentasse se levantar, na mesma posição de quando olhei antes. Às vezes, era fácil esquecer que ele não conseguia se virar sozinho. O cabelo estava grudado de um lado da cabeça e ele estava bem enrolado no edredom. O cheiro morno de homem sem banho enchia o quarto; não era desagradável, mas era algo um pouco assustador para fazer parte de um dia de trabalho.
— O que posso fazer por você? Quer um suco?
— Preciso mudar de posição.
Coloquei o suco sobre a cômoda e me aproximei da cama.
— O que... o que quer que eu faça?
Ele engoliu com cuidado, como se sentisse dor.
— Quero que me levante e me vire, depois erga o encosto da cama. Aqui... — Fez sinal para eu me aproximar. — Ponha os braços embaixo de mim, entrelace as mãos nas minhas costas e me levante. Fique encostada na cama para não distender sua coluna.
Não dava para fingir que aquilo não era um pouco estranho. Coloquei os braços em volta dele, seu cheiro preenchendo minhas narinas, sua pele quente encostando na minha. Só podia ficar mais perto se mordiscasse a orelha dele. Essa ideia me deixou histérica e precisei me esforçar para me conter.
— O que foi?
— Nada. — Respirei fundo, entrelacei as mãos e ajustei-me até sentir que ele estava firme. Ele era mais largo do que eu pensava e mais pesado também. Então, contei até três e o levantei.
— Meu Deus — exclamou ele, próximo ao meu ombro.
— O que foi? — Quase o deixei cair.
— Suas mãos estão geladas.
— É. Bom, se for sair da cama, saiba que lá fora está nevando.
Eu estava brincando, mas então notei que seu corpo estava quente sob a camiseta, o calor parecia vir de dentro. Ele resmungou um pouco quando o ajeitei no travesseiro e tentei me mexer o mais lenta e delicadamente possível. Ele apontou para o controle remoto que levantava a cama à altura da cabeça e dos ombros dele.
— Não levante muito — murmurou. — Estou um pouco tonto.
Acendi a luz da cabeceira, ignorando sua vaga reclamação, para poder ver seu rosto.
— Will... você está bem? — Precisei repetir a pergunta para ele responder.
— Já estive melhor.
— Precisa de analgésicos?
— Sim... bem fortes.
— Talvez paracetamol?
Ele suspirou no travesseiro frio.
Entreguei o copo de água para ele e esperei que engolisse.
— Obrigado — disse ele e, de repente, fiquei sem jeito.
Will jamais agradecia nada.
Ele fechou os olhos e durante um tempo fiquei na porta, observando seu peito subir e descer sob a camiseta, a boca entreaberta. Sua respiração estava curta e talvez um pouco mais difícil do que nos outros dias. Mas até então eu nunca o tinha visto fora da cadeira de rodas e não sabia se isso era devido à pressão de estar deitado.
— Pode ir — resmungou ele.
Saí.

* * *

Li minha revista e só levantei a cabeça para ver a neve se acumular, densa, em volta da casa, subindo pelo peitoril das janelas, formando uma paisagem granulada. Mamãe me mandou uma mensagem de texto ao meio-dia e meia, dizendo que papai não conseguiu sair de carro. “Não venha para casa sem antes ligar para nós”, recomendou. Eu não sabia ao certo o que ela ia fazer: mandar papai me buscar com um trenó e um cachorro São Bernardo?
Ouvi o noticiário pela rádio: os engarrafamentos nas estradas, os trens parados, as aulas suspensas devido à nevasca inesperada. Voltei ao quarto de Will e dei uma olhada nele outra vez. Não gostei de sua cor. Estava pálido, com pontos vermelhos nas bochechas.
— Will? — chamei, baixinho.
Ele não se mexeu.
— Will?
Senti leves pontadas de pânico. Chamei seu nome mais duas vezes, bem alto. Não tive resposta. Finalmente, debrucei-me sobre ele. Não havia nenhum movimento em seu rosto, nem em seu peito. Sua respiração. Eu devia sentir sua respiração. Encostei o rosto no dele, tentando detectar o ar saindo de suas narinas. Como não consegui, estendi a mão e toquei seu rosto de leve.
Ele se mexeu e abriu os olhos, que estavam a centímetros dos meus.
— Desculpe — falei, pulando para trás.
Ele piscou, olhou ao redor do quarto como se tivesse estado em algum lugar distante.
— Sou eu, Lou — expliquei, sem saber se ele havia me reconhecido.
Sua expressão era meio exasperada.
— Eu sei.
— Quer uma sopa?
— Não, obrigado. — Fechou os olhos.
— Mais analgésicos?
Havia um brilho de transpiração em seu rosto. Toquei o edredom, que estava um pouco quente e suado. Isso me deixou nervosa.
— Tem alguma coisa que eu deva fazer? Quer dizer, se Nathan não conseguir chegar aqui?
— Não... estou ótimo — ele murmurou e fechou os olhos de novo.
Conferi na agenda se eu tinha esquecido alguma coisa. Abri o armário de remédios, encontrei as caixas com luvas de borracha e curativos de gaze e concluí que não tinha a menor ideia de como se usava nada daquilo. Peguei o interfone e liguei para o pai de Will, mas o toque do telefone parecia desaparecer pela casa vazia. Dava para ouvir o som do outro lado do anexo.
Já estava quase ligando para a Sra. Traynor quando a porta dos fundos se abriu e Nathan entrou, envolto em volumosas camadas de roupas, um cachecol de lã e um chapéu que quase escondia sua cabeça inteira. Junto com ele, veio uma rajada de frio e uma lufada de neve.
— Olá — cumprimentou, sacudindo a neve das botas e batendo a porta.
Parecia que a casa tinha de repente acordado de um devaneio.
— Ah, graças a Deus você chegou — falei. — Ele não está bem. Dormiu praticamente a manhã inteira e quase não bebeu nada. Eu não sabia o que fazer.
Nathan tirou o casaco.
— Tive de vir a pé. Os ônibus pararam de circular.
Fui preparar um chá enquanto ele examinava Will.
Nathan apareceu na cozinha antes que a chaleira fervesse.
— Ele está ardendo de febre. Há quanto tempo está assim? — perguntou.
— A manhã toda. Achei que estava quente, mas ele disse que só queria dormir.
— Meu Deus. A manhã toda? Não sabe que o corpo dele não consegue controlar a própria temperatura? — Nathan passou por mim e foi mexer no armário de remédios. — Antibióticos. Fortes. — Mostrou-me um vidro, pegou um comprimido e triturou-o no pilão, furiosamente.
Olhei por trás dele.
— Dei um paracetamol.
— Também podia ter dado uma balinha.
— Eu não sabia. Ninguém disse nada. Eu o enrolei nas cobertas.
— A instrução está naquela maldita pasta. Olhe, Will não transpira como nós. Na verdade, não transpira a partir do ponto atingido pelo acidente. Isso significa que, se tem um leve resfriado, a temperatura sobe demais. Vá buscar o ventilador. Vamos deixá-lo ligado até a febre abaixar. E traga uma toalha úmida para colocar envolta da nuca dele. Só conseguiremos um médico quando a neve parar. Maldita agência de enfermagem. Deviam ter feito isso de manhã.
Nathan estava irritado de uma forma que eu nunca tinha visto. Não estava nem falando comigo.
Corri para buscar o ventilador.
Demorou quase quarenta minutos para a temperatura do corpo de Will alcançar um nível normal novamente. Enquanto esperávamos o remédio superforte para febre fazer efeito, coloquei uma toalha na testa dele e outra na nuca, como Nathan recomendou.
Tiramos a roupa dele, cobrimos seu peito com um lençol de algodão fino e colocamos o ventilador na direção dele. Sem a camisa, as cicatrizes de seus braços ficaram bem evidentes. Fingimos não reparar nelas.
Will suportou tudo isso apenas respondendo sim ou não às perguntas de Nathan, muitas vezes num tom tão indistinto que eu não tinha certeza se ele sabia o que estava dizendo. Agora que o via na claridade, me dava conta de que ele estava doente mesmo e me senti péssima por não ter percebido antes. Pedi mil desculpas até Nathan dizer que isso já estava ficando irritante.
— Certo. Preste atenção no que estou fazendo. Pode ser que precise repetir sozinha mais tarde — disse ele.
Não me senti no direito de reclamar. Mas foi difícil não me sentir mal quando Nathan tirou a calça do pijama de Will, revelando um estômago fundo, e, com cuidado, retirou o curativo de gaze em volta do tubinho na barriga, limpou devagar e fez outro curativo. Mostrou-me como trocar o coletor descartável de urina na cama, explicou por que o coletor precisava ficar sempre abaixo do corpo dele e me surpreendi por não ter me importado de sair do quarto com o saco de líquido morno. Fiquei feliz que Will não estivesse vendo isso, não só porque faria algum comentário ácido, mas porque o fato de estar participando de sua rotina íntima também o deixaria constrangido de alguma forma.
— Pronto — disse Nathan. Finalmente, uma hora depois Will dormia com a roupa de cama limpa e, se não parecia totalmente bem, também não parecia terrivelmente mal.
— Deixe-o dormir. Mas acorde-o daqui a umas duas horas e faça-o ingerir líquidos. Dê mais remédios para febre às cinco, certo? A temperatura deve subir de novo, mas não antes das cinco.
Anotei tudo num bloquinho. Estava com medo de fazer algo errado.
— Hoje à noite você terá de repetir tudo o que acabamos de fazer. Tudo bem? — Nathan se encheu de roupa como um esquimó e saiu na neve. — Leia as minhas instruções. E não fique nervosa. Qualquer problema, pode me ligar que eu explico tudo. Posso voltar, se for necessário.

* * *

Depois que Nathan foi embora, fiquei no quarto de Will. Estava com medo de sair de lá.
No canto, havia uma velha poltrona de couro com uma luminária que talvez fosse remanescente de sua antiga vida e enrosquei-me na poltrona com um livro de contos que peguei na estante.
O quarto estava estranhamente calmo. Pelo vão entre as cortinas dava para ver o mundo lá fora, coberto de branco, calmo e lindo. Ali dentro estava quente e silencioso e só o zunido e o assobio do aquecimento central interrompiam meus pensamentos.
Fiquei lendo e, de vez em quando, olhava Will dormir tranquilamente. Concluí que nunca houve uma época na minha vida em que pude ficar em silêncio, sem fazer nada.
Numa casa como a minha, é impossível crescer acostumado ao silêncio: o aspirador estava sempre ligado, a TV berrando, as pessoas falando. Nos raros momentos em que a TV ficava desligada, papai colocava seus velhos LPs do Elvis para tocar a todo volume. Um café também tem um barulho constante, com todo o falatório e tilintar de talheres.
Ali, eu podia ouvir meus pensamentos. E quase escutava meu coração batendo.
Percebi, para minha surpresa, que gostava disso.
Às cinco, meu celular recebeu uma mensagem de texto. Will se mexeu e levantei da poltrona, preocupada em não incomodá-lo com o telefone.

Trens fora de circulação. Você por acaso poderia ficar esta noite?
Nathan não pode voltar. Camilla Traynor.

Só pensei direito ao digitar a resposta.

Sem problema.

Liguei para meus pais e avisei que ia passar a noite nos Traynor. Minha mãe pareceu aliviada. Quando contei que receberia a mais por isso, ela se encheu de alegria.
— Ouviu essa, Bernard? — perguntou, sua mão tapando parte do bocal do telefone. — Vão pagar a ela por dormir lá.
Ouvi a exclamação de surpresa de meu pai.
— Graças a Deus. Ela encontrou a profissão dos sonhos.
Mandei uma mensagem de texto para Patrick dizendo que tinham me pedido para passar a noite lá e que mais tarde eu ligaria. Sua resposta chegou segundos depois.

Vou fazer cross-country na neve esta noite.
É um bom treino para a Noruega! Te amo. P.

Pensei em como alguém poderia ficar tão animado com a perspectiva de correr a uma temperatura abaixo de zero, só de calça e camiseta.
Will dormia. Preparei um jantar para mim e descongelei uma sopa, caso ele quisesse mais tarde. Acendi a lareira, pois talvez ele acordasse mais disposto e quisesse ficar na sala. Li mais um conto e pensei em quanto tempo fazia que eu não comprava um livro. Quando era criança, eu adorava ler, mas desde então só me lembrava de ter lido revistas. Treen era a leitora. Era quase como se, ao pegar um livro, eu estivesse invadindo o seu espaço. Pensei nela e em Thomas indo embora para a universidade e percebi que ainda não sabia ao certo se aquilo me deixava triste ou alegre – ou se era algo mais complicado, um meio-termo.
Nathan ligou às sete. Pareceu aliviado porque eu ia passar a noite lá.
— Não consegui falar com o Sr. Traynor. Liguei para o telefone fixo da casa, mas caía direto na secretária eletrônica.
— É. Bom. Ele vai sair.
— Sair?
Senti um súbito pânico ao pensar que só ficaríamos Will e eu na casa a noite inteira. Estava com medo de cometer algum erro importante de novo, de colocar em risco a saúde de Will.
— Devo ligar para a Sra. Traynor, então?
Fez-se um curto silêncio do outro lado da linha.
— Não, melhor não.
— Mas...
— Escute, Lou, ele costuma... costuma sair quando a Sra. Traynor está na cidade.
Levei alguns minutos para entender o que ele estava dizendo.
— Ah.
— É bom que você esteja aí. Se tem certeza de que Will melhorou, então voltarei de manhã cedo.

* * *

Existem horas normais e horas inúteis, nas quais o tempo para e escorre e a vida – a vida real – parece distante. Vi um pouco de TV, jantei, arrumei a cozinha e andei pelo anexo em silêncio. Por fim, voltei ao quarto de Will.
Ele se mexeu quando fechei a porta e levantou um pouco a cabeça.
— Que horas são, Clark? — Sua voz estava meio abafada pelo travesseiro.
— Oito e quinze.
Ele deixou a cabeça cair no travesseiro e pensou a respeito.
— Posso beber alguma coisa?
Sua voz não estava agressiva ou ríspida. Foi como se, ao adoecer, ele finalmente se tornasse vulnerável. Dei um suco a ele e acendi a luz da cabeceira. Inclinei-me ao lado da cama e toquei sua testa como minha mãe fazia quando eu era criança. Ainda estava um pouco quente, mas não como antes.
— Mãos frias.
— Você já reclamou delas mais cedo.
— Foi? — Ele parecia realmente surpreso.
— Quer uma sopa?
— Não.
— Está confortável?
Eu nunca sabia o quanto ele estava desconfortável, mas suspeitava que devia ser mais do que demonstrava.
— Seria bom virar para o outro lado. Basta rolar meu corpo. Não precisa me fazer sentar.
Subi na cama e rolei-o, o mais delicadamente possível. Ele não irradiava mais um calor sinistro, só o calor usual de um corpo que ficou muito tempo embaixo do edredom.
— Posso fazer mais alguma coisa?
— Você não devia ir para casa?
— Não se preocupe, vou passar a noite aqui.
Lá fora, a última luz do dia já tinha sumido há algum tempo. Ainda nevava. A luz que entrava pela janela do vestíbulo era de um dourado suave, melancólico. Ficamos sentados ali num silêncio pacífico, olhando hipnotizados a neve cair.
— Posso perguntar uma coisa? — falei, por fim.
Vi as mãos dele sobre o lençol. Era estranho que parecessem tão normais e tão fortes, mas não servissem para nada.
— Imagino que vá perguntar de qualquer jeito.
— O que houve? — Eu não parava de pensar nas cicatrizes nos pulsos dele. Essa era a única pergunta que eu não podia fazer diretamente.
Ele abriu um olho.
— Quer saber como fiquei assim?
Concordei com a cabeça e ele fechou os olhos outra vez.
— Acidente de moto. Não por culpa minha, eu era um inocente pedestre.
— Pensei que tivesse sido esquiando, ou fazendo bungee jumping, ou algo assim.
— Todo mundo pensa. Foi uma piadinha de Deus. Eu estava atravessando a rua em frente à minha casa. Não aqui, em frente à minha casa em Londres.
Olhei os livros na estante. Entre os livros de bolso bastante manuseados da Penguin, havia títulos da área de negócios: Direito Corporativo, Administração, anuários sobre assuntos que eu ignorava.
— E você não podia continuar no trabalho?
— Não. Nem com o apartamento, as férias, a vida... acho que você conheceu minha ex-namorada. — A mudança na voz não disfarçou a amargura. — Mas aparentemente eu devia ser grato, pois chegaram a pensar que eu fosse morrer.
— Você detesta isso? Morar aqui, quero dizer?
— Detesto.
— Não tem como voltar a morar em Londres?
— Desse jeito, não.
— Mas você pode melhorar. Nathan disse que há muitos avanços no tratamento desse tipo de lesão.
Will fechou os olhos de novo.
Aguardei, e então arrumei o travesseiro atrás da sua cabeça e estiquei o edredom sobre ele.
— Desculpe se faço muitas perguntas — pedi, sentando reta na cama. — Quer que eu saia?
— Não, fique um pouco. Converse comigo. — Engoliu em seco. Seus olhos se abriram outra vez e seu olhar encontrou o meu. Parecia insuportavelmente cansado. — Conte uma coisa boa.
Hesitei por um instante, depois recostei-me nos travesseiros ao lado dele. Ficamos ali no lusco-fusco, olhando os flocos de neve mal-iluminados desaparecerem na escuridão da noite.
— Sabe... eu costumava pedir isso ao meu pai — disse, por fim. — Mas se eu lhe contar a resposta que ele me dava, você vai achar que sou louca.
— Mais louca do que já acho?
— Quando eu tinha um pesadelo, estava triste ou assustada por algum motivo, ele cantava para mim ... — Comecei a rir. — Ah... não posso contar.
— Continue.
— Ele cantava para mim a Canção Molahonkey.
— Canção o quê?
— Canção Molahonkey. Eu achava que todo mundo conhecia.
— Garanto a você, Clark, que sou virgem em matéria de Molahonkey. — murmurou Will.
Respirei fundo, fechei os olhos e comecei a cantar.

Gostaria de ir a Molahooooonkey
A teeeeerra oooooonde naaaaaasci
Para então tocaaaaar meu veeeeeelho baaaanjo
Meu velho banjo que estragoooou.

— Meu Deus.
Respirei fundo outra vez.

Eu fui à loooooooja de consertooooos
Ver o que eles poderiiiiiiiam fazeeeeer
Eles disseeeeeeram que as cooooordas estragaaaram
Não daaaaava mais para consertaaaar.

Fez-se um curto silêncio.
— Você é louca. A sua família inteira é.
— Mas a canção fazia efeito.
— E você canta mal à beça. Espero que seu pai fosse melhor.
— Acho que o que você quis dizer foi “obrigado, Srta. Clark, por tentar me distrair.”
— Acho que isso funcionou tanto quanto quase todo o apoio psicológico que tive. Certo, Clark. Faça outra coisa. Que não seja cantar.
Pensei um pouco.
— Hum... certo... Bom, outro dia, você reparou nos meus sapatos, não foi?
— Difícil não reparar.
— Pois minha mãe diz que gosto de sapatos diferentes desde os três anos. Ela comprou para mim galochas com purpurina azul-turquesa, o que na época era bem diferente, as crianças tinham apenas galochas verdes ou, no máximo, vermelhas. Ela diz que desde esse dia, não as tirei mais do pé. Usava para dormir, tomar banho e para ir à creche até no verão. Meu visual preferido eram essas galochas com purpurina e meia-calça de abelhinha.
— Meia-calça de abelhinha?
— Tinham listras pretas e amarelas.
— Que coisa linda.
— Eram meio cafonas.
— Bom, é verdade. Parece um pouco rebelde.
— Você pode achar que não, mas, por incrível que pareça, Will Traynor, nem todas as garotas se vestem só para agradar os rapazes.
— Bobagem.
— Não, não é.
— As mulheres fazem tudo pensando nos homens. Todo mundo faz as coisas pensando em sexo. Não leu A Rainha Vermelha? — perguntou Will.
— Nunca ouvi falar. Mas garanto a você que não sentei na sua cama para cantar a Canção Molahonkey com segundas intenções. E aos três anos eu simplesmente adorava usar meias listradas.
Percebi que a preocupação que senti o dia todo aos poucos ia sumindo junto com os comentários de Will. Eu não era mais a única responsável por um pobre tetraplégico. Estava apenas sentada com um sujeito particularmente irônico, batendo um papo.
— Mas, e aí, o que aconteceu com as belas galochas de purpurina?
— Mamãe teve de jogar fora. Tive pé de atleta.
— Que ótimo.
— As meias também foram para o lixo.
— Por quê?
— Nunca soube. Mas fiquei arrasada. Nunca mais tive meias das quais gostasse tanto. Como aquelas não existem mais. Ou, se existem, não fazem para adultos.
— Que estranho.
— Ah, pode zombar. Você nunca gostou tanto assim de alguma coisa?
Eu mal o enxergava, o quarto estava praticamente no escuro. Podia ter acendido a luz, mas algo me impediu. E assim que percebi o que tinha dito, me arrependi.
— Sim — disse ele, baixinho. — Já gostei.
Conversamos mais um pouco até que Will acabou adormecendo. Fiquei ali observando sua respiração, e algumas vezes imaginava o que ele diria caso acordasse e me visse ali encarando-o, olhando para o seu cabelo comprido demais, os olhos fundos e a barba por fazer. Mas não conseguia me mexer. As horas tinham se tornado irreais, uma ilha fora do tempo. Eu era a única pessoa na casa e tinha medo de deixá-lo.
Pouco depois das onze horas, percebi que ele começou a transpirar de novo, sua respiração ficou mais curta. Acordei-o e dei um remédio para febre. Ele não falou nada, só murmurou um obrigado. Troquei o lençol que o cobria e as fronhas e quando ele finalmente adormeceu de novo, deitei perto dele e, bem depois, também peguei no sono.

* * *

Acordei com alguém me chamando. Estava dormindo na carteira da sala de aula e o professor batia no quadro-negro, repetindo meu nome sem parar. Eu sabia que tinha de prestar atenção, sabia que o professor ia considerar aquele cochilo uma falta de respeito, mas não conseguia levantar a cabeça da carteira.
— Louisa.
— Hummmm.
— Louisa.
A carteira era terrivelmente macia. Abri os olhos. As palavras ecoavam acima da minha cabeça, sussurradas, mas com muita ênfase. Louisa.
Eu estava na cama. Pisquei, consegui focar a vista e vi Camilla Traynor me olhando de cima. Ela usava um pesado casaco de lã e uma bolsa pendurada no ombro.
— Louisa.
Levantei-me, assustada. Ao meu lado, Will dormia sob as cobertas, a boca entreaberta, os braços dobrados na frente do corpo. A luz entrava pela janela, mostrando uma manhã clara e fria.
— Hum.
— O que você está fazendo?
Senti como se tivesse sido surpreendida fazendo algo horrível. Esfreguei o rosto, tentando entender o que se passava. Por que eu estava ali? O que devia dizer a ela?
— O que está fazendo na cama de Will?
— Will... — repeti, baixinho. — Will não estava bem... achei que devia ficar de olho...
— O que significa não estava bem? Venha, vamos para o corredor. — Ela saiu do quarto, esperando que eu a seguisse, claro.
Fui atrás dela tentando ajeitar minhas roupas. Tinha a horrível impressão de que minha maquiagem estava toda borrada.
Ela fechou a porta do quarto de Will.
Fiquei de frente para ela, tentando arrumar o cabelo enquanto concatenava as ideias.
— Will estava com febre. Nathan conseguiu abaixar a temperatura quando chegou, mas eu não sabia daquele negócio de equilíbrio da temperatura corporal e queria ficar de olho nele... Nathan disse para eu ficar... — Minha voz estava grossa, esquisita, e eu não tinha certeza se o que falava tinha alguma coerência.
— Por que não me ligou? Se ele estava doente, você devia ter me ligado na mesma hora. Ou para o Sr. Traynor.
Meus neurônios pareceram se conectar de repente. O Sr. Traynor. Ai, meu Deus.
Olhei o relógio. Eram quinze para as oito.
— Eu não... Nathan parecia...
— Escute, Louisa. Realmente não se trata de ciência interplanetária. Se Will estava doente a ponto de você precisar dormir no quarto dele, devia ter me avisado.
— Sim.
Pisquei, encarando o chão.
— Não entendo por que não me ligou. Tentou ao menos ligar para o Sr. Traynor?
Nathan disse para eu não contar nada.
— Eu...
Nesse instante, a porta do anexo se abriu e o Sr. Traynor apareceu com um jornal dobrado embaixo do braço.
— Você voltou! — disse ele para a esposa, tirando os flocos de neve dos ombros. — Fiz um esforço para conseguir sair e comprar jornal e leite. As estradas estão muito perigosas. Tive que ir até Hansford Corner para evitar as placas de gelo.
Ela o encarou e por um momento me perguntei se havia percebido que o marido usava a mesma camisa e o mesmo suéter do dia anterior.
— Sabia que Will passou a noite doente?
Ele olhou diretamente para mim. Olhei para meus pés. Acho que nunca fiquei tão sem jeito.
— Você me ligou, Louisa? Desculpe... não ouvi. Acho que o interfone de casa está com defeito. Ele já não funcionou outras vezes. E eu também não estava me sentindo muito bem na noite passada.
Eu ainda estava usando as meias de Will. Olhei para elas, imaginando o que a Sra. Traynor ia achar daquilo também.
Mas ela parecia distraída.
— Foi uma longa viagem até em casa. Acho que... vamos deixar isso para lá. Mas, se acontecer algo parecido de novo, você deve me ligar imediatamente. Entendeu?
Não queria olhar para o Sr. Traynor.
— Sim — respondi, e sumi dali ao entrar na cozinha.

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