terça-feira, 29 de março de 2016

Capítulo 5

Ser atirada para dentro de uma vida totalmente diferente – ou, pelo menos, jogada com tanta força na vida de outra pessoa a ponto de parecer bater com a cara na janela dela – obriga a repensar sua ideia a respeito de quem você é. Ou sobre como os outros o veem.
Para meus pais, em quatro curtas semanas eu fiquei um pouco mais interessante. Passei a ser o canal para um mundo diferente. Minha mãe, particularmente, todo dia me fazia perguntas sobre a Granta House e os hábitos domésticos de seus moradores, como se fosse uma zoóloga forense observando alguma estranha criatura nova e seu hábitat.
— A Sra. Traynor usa guardanapos de linho em todas as refeições? — ela poderia perguntar, ou: — Eles passam aspirador na casa todos os dias, como nós? — Ou ainda: — Como eles preparam as batatas?
Mamãe se despedia de mim de manhã com recomendações estritas para que eu descobrisse que marca de papel higiênico eles usavam, ou se os lençóis eram de algodão misto. Isso era fonte de grande decepção, já que na maioria das vezes eu não conseguia me lembrar de investigar nada. Minha mãe estava secretamente convencida de que os bacanas viviam como porcos – isso desde que eu contei, aos seis anos, sobre uma colega bem-nascida cuja mãe não nos deixava brincar na sala “porque íamos levantar a poeira”.
Quando eu chegava em casa e contava que, sim, o cachorro definitivamente podia comer na cozinha ou que, não, os Traynor não varriam a escada da frente todos os dias como minha mãe fazia, ela contraía os lábios, olhava de soslaio para meu pai e acenava com a cabeça em muda satisfação, como se tivesse acabado de confirmar tudo de que suspeitava sobre os modos desleixados da classe alta.
O fato de minha família depender do meu salário, ou de saber que eu não gostava mesmo do meu trabalho, significou receber um pouco mais de respeito em casa. Isso, na verdade, não mudava muito as coisas: no caso de meu pai, ele parou de me chamar de “gordota” e, quanto a mamãe, passei a ter uma caneca de chá à minha espera quando chegava em casa.
Para Patrick e minha irmã, eu era a mesma: ainda alvo de piadas, e a recebedora de abraços, beijos e maus humores. Eu não me sentia diferente. Parecia a mesma pessoa, ainda vestida, segundo Treen, como se tivesse enfrentado uma luta greco-romana num brechó de caridade.
Eu não fazia ideia do que os moradores da Granta House achavam de mim. Will era indecifrável. Para Nathan, eu devia ser apenas mais uma em uma longa lista de cuidadoras contratadas. Ele era bastante simpático, mas um pouco distante. Suspeitava de que ele não estava convencido de que eu fosse durar muito. O Sr. Traynor me cumprimentava, afável, quando nos cruzávamos no hall, ocasionalmente me perguntava como estava o trânsito ou se tudo ia bem. Mas não sei se me reconheceria se nos víssemos em um outro cenário.
Mas para a Sra. Traynor – ó, céus! – para ela eu era aparentemente a pessoa mais idiota e mais irresponsável do mundo.
Tudo começou com os porta-retratos. Nada naquela casa escapava à observação da Sra. Traynor, e eu deveria saber que a destruição dos porta-retratos seria considerada um evento sísmico. Ela me interrogou para saber por quanto tempo exatamente eu tinha deixado Will sozinho; o que havia motivado aquilo; quão rápido eu havia arrumado tudo. Não chegou a me criticar – era muito discreta até mesmo para aumentar a voz – mas o jeito de piscar os olhos devagar a cada resposta que eu dava, os breves hum-hums conforme eu falava, disseram tudo o que eu precisava saber. Não fiquei surpresa quando Nathan me contou que ela era magistrada.
Ela achava que seria uma boa ideia se eu não deixasse Will sozinho da próxima vez, não importando quão desagradável fosse a situação, hum? E que, na próxima vez que eu tirasse o pó dos móveis, eu poderia me certificar de que os objetos não estivessem tão na beirada de modo a evitar que caíssem acidentalmente no chão, hum? (Ela parecia preferir crer que aquilo fora um acidente). A Sra. Traynor fazia com que eu me sentisse uma idiota de primeira categoria e, consequentemente, foi isso que me tornei quando estava perto dela. Ela sempre chegava quando eu tinha acabado de deixar alguma coisa cair no chão, ou estava lutando com os botões do fogão, ou então ela estava de pé na entrada, aparentando um pouco de irritação quando eu pisava de volta na casa depois de buscar lenha lá fora, como se eu tivesse ido muito mais longe do que de fato eu tinha ido.
Estranhamente, o comportamento da Sra. Traynor me atingia mais do que a agressividade de Will. Em algumas ocasiões, tive vontade de perguntar abertamente se havia algo errado. Você disse que estava me contratando mais pela minha postura do que por minhas habilidades profissionaiseu quis dizer. Bem, aqui estou eu, sendo animada a cada dia duro. Sendo forte, como você queria. Então, qual é o seu problema?
Mas Camilla Traynor não era o tipo de mulher para quem se podia dizer isso. Além do mais, eu achava que ninguém naquela casa falava qualquer coisa diretamente para outra pessoa.
— Lily, a nossa última garota, tinha o inteligente hábito de usar uma mesma panela para cozinhar dois legumes de uma vez. — O que significava: Você está fazendo muita bagunça.
“Talvez você queira uma xícara de chá, Will” significava Não faço a menor ideia do que falar para você, Will.
“Acho que tenho alguns papéis para organizar” significava Você está sendo grosseiro, vou sair do quarto.
Tudo isso dito com aquela expressão levemente sofrida e os dedos delgados movendo de um lado para o outro o crucifixo na corrente. Ela era contida demais, reprimida demais. Fazia minha mãe se parecer com a Amy Winehouse. Eu sorria educadamente, fingindo que não havia reparado, e fazia o que era paga para fazer.
Ou, pelo menos, tentava.
— Por que, raios, você está tentando esconder cenouras no meu garfo?
Dei uma olhada para o prato. Eu estava assistindo a apresentadora na TV e pensando como meu cabelo ficaria tingido na cor do dela.
— Hein? Não tentei.
— Tentou. Você amassou as cenouras e tentou escondê-las no molho da carne. Eu vi.
Enrubesci. Ele tinha razão. Eu estava dando comida a Will enquanto assistíamos, meio distraídos, ao noticiário da hora do almoço. A refeição era rosbife com purê de batatas. A mãe de Will tinha dito para colocar três tipos de legumes no prato, embora ele tivesse deixado bem claro que não queria legumes naquele dia. Acho que não existia uma única refeição que eu fosse instruída a preparar que não fosse milimetricamente balanceada em termos nutricionais.
— Por que você está querendo me contrabandear cenouras?
— Não quero.
— Quer dizer que não tem cenoura aí?
Olhei para os pedacinhos cor de laranja.
— Bom... está certo...
Ele estava esperando, sobrancelhas erguidas.
— Hum... acho que pensei que legumes poderiam fazer bem a você.
Fiz isso em parte em obediência à Sra. Traynor e em parte por hábito. Eu costumava dar comida para Thomas, cujos legumes precisavam ser amassados e escondidos em montes de batata, ou ocultados em bocados de macarrão. Cada pedacinho que passava por ele era como uma pequena vitória.
— Deixe-me ver se entendi. Você acha que uma colher de chá de cenoura vai melhorar minha qualidade de vida?
De fato, era muito idiota quando ele colocava a coisa daquele jeito. Mas eu tinha aprendido que era importante não parecer intimidada por nada que Will dissesse ou fizesse.
— Entendi seu ponto — falei, calma — não farei de novo.
E então, do nada, Will Traynor riu. Explodiu de dentro dele num arquejar, como se tivesse sido totalmente inesperado.
— Pelo amor de Deus. — Ele balançou a cabeça.
Encarei-o.
— O que mais você tem escondido na minha comida? Daqui a pouco vai dizer para eu abrir o túnel e o Sr. Trem vai levar um pouco de brotos de couve-de-bruxelas até a próxima estação.
Pensei naquilo por um minuto.
— Não — disse eu, séria — eu só lido com o Sr. Garfo, e ele não se parece com um trem.
Alguns meses antes, Thomas tinha me dito isso, bem firme.
— Minha mãe mandou você fazer isso?
— Não. Olhe, Will, desculpe. Eu... não estava raciocinando.
— Como se isso alguma vez acontecesse.
— Tudo bem, tudo bem. Vou tirar as benditas cenouras, se incomodam tanto a você.
— Não são as benditas cenouras que me incomodam, mas sim tê-las escondidas em minha comida por uma mulher maluca que chama os talheres de Sr. e Sra. Garfo.
— Era uma brincadeira. Olhe, deixe eu tirar as cenouras e...
Ele virou a cara.
— Não quero mais nada. Só faça uma xícara de chá para mim. — Saí da sala e ele berrou: — E não tente colocar uma porcaria de uma abobrinha no chá.
Nathan entrou quando eu estava terminando com os pratos.
— Ele está de bom humor — disse, quando lhe entreguei uma caneca de chá.
— Está? — Eu estava comendo meus sanduíches na cozinha. Estava muito frio lá fora e de algum modo a casa não parecia tão hostil nos últimos tempos.
— Ele disse que você está querendo envenená-lo. Mas disse... você sabe... de um jeito legal.
Fiquei estranhamente satisfeita com a notícia.
— É... bom... — disse eu, tentando esconder o que eu sentia — preciso de tempo.
— Ele também tem falado um pouco mais. Havia semanas em que mal dizia uma palavra, mas nos últimos dias ele anda definitivamente mais a fim de conversar.
Pensei em Will dizendo que, se eu não parasse com aquela porcaria de assovio, ele teria de me despedir.
— Acho que a noção de conversa dele é pouco diferente da minha.
— Bom, nós conversamos um pouco sobre críquete. E vou lhe dizer... — Nathan baixou a voz — Há mais ou menos uma semana, a Sra. T. perguntou se eu achava que você estava indo bem. Eu disse que achava você muito profissional, mas eu sabia que não era isso que ela queria saber. Então, ontem ela me disse que tinha ouvido vocês dois rindo.
Lembrei da tarde anterior.
— Ele estava rindo de mim — expliquei.
Will tinha achado muito engraçado que eu não soubesse o que era pesto. Eu disse que o jantar seria “macarrão com molho verde”.
— Ah, ela não se importa com isso. É que há muito tempo ele não ri de alguma coisa.
Era verdade. Parecia que Will e eu tínhamos encontrado um jeito mais simples de conviver. O que girava em torno, principalmente, de ele ser rude comigo e de eu, de vez em quando, devolver a grosseria. Will dizia que eu tinha feito algo errado e eu perguntava se aquilo era da conta dele, então ele falava de maneira educada. Ele me xingava, ou dizia que eu era um pé no saco, e eu respondia que ele poderia tentar ficar sem aquele pé no saco específico. Era meio exagerado, mas parecia funcionar para ambos os lados. Às vezes, parecia até um alívio para ele que houvesse alguém preparado para tratá-lo mal, contradizê-lo ou alertá-lo para o fato de que estava sendo desagradável.
Eu tinha a sensação de que, desde o acidente, todo mundo andava na ponta dos pés ao redor dele, exceto talvez Nathan, a quem Will parecia tratar com um respeito maquinal e que provavelmente não se incomodaria de todo modo com nenhum dos comentários afiados de Will. Nathan era um veículo blindado em forma de homem.
— Você deve procurar continuar sendo o alvo das piadas dele, certo?
Coloquei minha caneca na pia.
— Acho que isso não será um problema.
A outra grande mudança, além das condições atmosféricas no interior da casa, era que Will não pedia para ficar sozinho tanto quanto antes, e em algumas tardes até me perguntava se eu queria ficar e assistir a um filme com ele. Não me incomodei muito quando foi a vez de O exterminador do futuro – embora eu já tivesse assistido a todos os filmes da série – mas quando ele me mostrou o filme francês legendado, dei uma rápida olhada na capa e disse que achava que eu preferia deixar passar aquele.
— Por quê?
Dei de ombros.
— Não gosto de filme legendado.
— É o mesmo que não gostar de filmes com atores. Não seja ridícula. Do que você não gosta? De precisar ler ao mesmo tempo que vê alguma coisa?
— Eu só não gosto mesmo de filme estrangeiro.
— Qualquer filme que não se enquadre no festival de cinema local é estrangeiro. Você acha que Hollywood é um subúrbio de Birmingham?
— Muito engraçado.
Ele não acreditou quando eu admiti que nunca tinha visto um filme legendado. Mas meus pais costumavam monopolizar o controle remoto à noite e era tão plausível que Patrick assistisse a um filme estrangeiro quanto seria sugerir que nós nos matricularíamos em aulas noturnas de crochê. O multiplex na cidade mais próxima da nossa só passava os últimos filmes de tiroteio ou comédias românticas e ficava tão lotado de crianças encapuzadas perturbando durante a sessão que a maioria das pessoas que moravam perto da cidade nem se dava o trabalho de ir ao cinema.
— Você precisa assistir a esse filme, Louisa. Na verdade, isso é uma ordem. — Will moveu sua cadeira de rodas para trás e fez sinal com a cabeça em direção à poltrona. — Ali. Sente-se ali. Não se mexa até que termine. Nunca assistiu a um filme estrangeiro! Pelo amor de Deus — resmungou ele.
Era um filme antigo sobre um corcunda que herda uma casa no interior da França e Will disse que era baseado num livro famoso, mas posso dizer que eu nunca ouvi falar nele. Passei os primeiros vinte minutos me sentindo meio irrequieta, irritada com as legendas e pensando se Will ia ficar ofendido se eu dissesse que precisava ir ao banheiro.
E então, aconteceu uma coisa. Parei de pensar em como era difícil ouvir e ler ao mesmo tempo, esqueci os horários dos remédios de Will e mesmo se a Sra. Traynor poderia pensar que eu estava sendo indolente, e comecei a ficar nervosa pelo pobre homem e sua família, que estavam sendo enganados por vizinhos inescrupulosos.
Quando o Corcunda morreu, eu soluçava baixinho, limpando a coriza que se espalhava com a manga da minha blusa.
— Então — disse Will, surgindo ao meu lado. Deu uma olhadela furtiva na minha direção — você não gostou mesmo.
Olhei para ele e descobri, para minha surpresa, que lá fora estava escuro.
— Você agora vai tripudiar, não é? — resmunguei, pegando a caixa de lenços de papel.
— Um pouco. Estou pasmo que você tenha alcançado a madura idade de... quanto mesmo?
— Vinte e seis.
— Vinte e seis anos sem nunca ter visto um filme legendado. — Ele me observou enxugar os olhos.
Vi o lenço de papel e percebi que não tinha restado rímel em meus olhos.
— Não pensei que fosse obrigatório — rosnei.
— Certo. Então o que você faz, Louisa Clark, se não assiste a filmes?
Amassei o papel.
— Você quer saber o que eu faço quando não estou aqui?
— Foi você que quis que nos conhecêssemos. Então, vamos lá, fale sobre você.
Ele tinha aquele jeito de falar que não nos deixava saber se estava zombando ou não.
Eu esperava o troco.
— Por que, de repente, ficou interessado?
— Ah, pelo amor de Deus. Sua vida social não é segredo de Estado, é? — Ele começou a parecer irritado.
— Sei lá o que faço... — respondi. — Saio para beber em um pub. Assisto um pouco de TV. Vou ver meu namorado correr. Nada demais.
— Vai ver seu namorado correr.
— É.
— Mas você mesma não corre.
— Não. Na verdade, eu não... — Olhei para o meu tórax. — ... não levo jeito.
Isso fez com que ele sorrisse.
— E o que mais?
— Como assim, o que mais?
— Tem hobbies? Viaja? Lugares onde gosta de ir?
Ele estava começando a soar como o meu velho orientador vocacional.
Tentei pensar.
— Não tenho hobbies. Leio um pouco. Gosto de roupas.
— Conveniente — disse ele, seco.
— Você perguntou. Não sou uma pessoa de hobbies. — Minha voz ficou estranhamente defensiva. — Não faço muita coisa, certo? Trabalho e vou para casa.
— Onde você mora?
— Do outro lado do castelo. Na Renfrew Road.
Ele pareceu pasmo. Claro. Havia pouca gente transitando entre os dois lados do castelo.
— É depois da rodovia com pista dupla. Perto do McDonald’s.
Ele balançou a cabeça, embora eu não estivesse certa de que ele realmente conhecia o lugar de que eu estava falando.
— Férias?
— Fui à Espanha com Patrick. Meu namorado — acrescentei. — Quando eu era pequena, só íamos a Dorset. Ou Tenby. Minha tia mora lá.
— E o que você quer?
— O que eu quero do quê?
— Da vida?
Pisquei.
— Isso é um pouco íntimo, não?
— O que você quer no geral. Não estou pedindo para se autoanalisar. Só estou perguntando o que você quer. Casar? Ter alguns pestinhas? Sonha com alguma profissão? Gostaria de viajar pelo mundo?
Fez-se uma longa pausa.
Acho que eu sabia que minha resposta o desapontaria mesmo antes de eu dizer aquelas palavras.
— Não sei. Nunca pensei nisso.

* * *

Na sexta-feira, fomos ao hospital. Fiquei feliz por só ter sido avisada da consulta quando cheguei para trabalhar de manhã, pois teria ficado acordada a noite inteira preocupada se soubesse que ia de levá-lo de carro até lá. Claro que sei dirigir. Mas posso dizer que dirijo do mesmo jeito que falo francês. Sim, fiz o exame de habilitação e passei. Mas, desde então, não usei essa habilidade específica mais que uma vez por ano. A ideia de colocar Will e sua cadeira de rodas na minivan adaptada, levá-lo e trazê-lo da cidade vizinha me enchia de terror.
Durante semanas, desejei que meu dia de trabalho envolvesse algum tipo de fuga daquela casa. Mas, naquele momento, eu teria feito qualquer coisa para ficar ali dentro.
Encontrei um cartão do hospital no meio da pasta com seus documentos, que tinha grossas divisórias intituladas Transporte, Seguro, Viver com Deficiência e Compromissos.Peguei o cartão e verifiquei que a data que estava nele era a de hoje.
Uma parte de mim esperava que Will estivesse errado.
— Sua mãe vai conosco?
— Não. Ela não acompanha as consultas.
Não consegui esconder minha surpresa. Eu havia pensado que ela quisesse supervisionar cada aspecto do tratamento dele.
— Ela costumava ir — disse Will. — Agora temos um acordo.
— Nathan vai?
Eu estava ajoelhada na frente dele. Fiquei tão nervosa que deixei cair um pouco do almoço em sua calça, e tentava inutilmente esfregar aquilo, de modo que uma boa parte de sua roupa estava ensopada. Will não disse nada, apenas mandou eu parar de me desculpar, o que não ajudou muito com meu estado geral de nervosismo.
— Por quê?
— Por nada. — Eu não queria que ele soubesse quão amedrontada eu estava.
Passei a maior parte daquela manhã (tempo que em geral usava para limpar as coisas) lendo e relendo o manual de instruções do dispositivo para içar a cadeira no carro, mas eu ainda estava apavorada com o momento em que seria a única responsável por levantá-lo na cadeira a meio metro do chão.
— Ora, Clark. Qual é o problema?
— Está bem. Eu só... eu só achei que seria mais fácil se, na primeira vez, alguém que estivesse a par das coisas fosse também.
— Ao contrário de mim — disse ele.
— Não foi o que eu quis dizer.
— Acha que não sei me cuidar?
— Você opera o içador de cadeira? — perguntei, grosseiramente. — É capaz de me dizer exatamente o que eu preciso fazer?
Ele ficou me olhando no mesmo nível. Se estivera procurando briga, parecia que tinha mudado de ideia.
— Você venceu. Sim, Nathan vai. Ele é um par extra de mãos bastante útil. Além disso, achei que você ficaria menos nervosa se ele fosse também.
— Não estou nervosa — protestei.
— É evidente que não. — Ele olhou para o próprio colo, que eu ainda esfregava com um pano. Eu conseguira tirar o molho de macarrão, mas Will estava encharcado. — Então, eu vou sair na rua parecendo sofrer de incontinência urinária?
— Não terminei. — Liguei o secador de cabelos e direcionei o bocal para o meio das pernas dele.
No momento em que o ar quente atingiu suas calças, suas sobrancelhas se ergueram.
— Sim, bem... — falei. — Também não era o que eu planejava fazer numa tarde de sexta-feira.
— Você está mesmo tensa, não é?
Eu podia sentir que ele me observava.
— Ah, anime-se, Clark. Sou eu que estou recebendo ar escaldante nos genitais.
Não respondi. Ouvi a voz dele por cima do barulho do secador.
— Vamos lá, qual é a pior coisa que poderia me acontecer: acabar numa cadeira de rodas?
Pode parecer idiota, mas não consegui não rir. Era o mais perto que Will chegara de realmente tentar fazer algo para me animar.

* * *

Do lado de fora, o carro parecia um veículo comum, mas quando se abria a porta traseira, uma rampa descia pela lateral e se nivelava com o chão. Com Nathan acompanhando, guiei a cadeira de uso externo (Will tinha uma só para viagens) precisamente até em cima da rampa, conferi o freio elétrico e programei para que Will fosse içado devagar para dentro do carro. Nathan deslizou para o banco do passageiro, colocou o cinto em Will e verificou as rodas. Tentando fazer com que minhas mãos parassem de tremer, soltei o freio de mão do carro e dirigi devagar pelo caminho até o hospital.
Longe de casa, Will pareceu encolher um pouco. Fazia frio e Nathan e eu o enrolamos num cachecol e num casaco grosso, mas ele continuou calado, o maxilar endurecido, de certa forma oprimido pela vastidão ao seu redor. Toda vez que eu olhava no espelho retrovisor (o que acontecia com frequência – mesmo com Nathan lá, eu estava morrendo de medo de que a cadeira se soltasse da amarração), ele estava espiando para fora da janela com uma expressão insondável. Mesmo quando eu parava ou freava forte, o que ocorreu várias vezes, ele apenas estremecia um pouco e esperava que eu prosseguisse.
Quando chegamos ao hospital, uma fina camada de suor cobria meu corpo. Percorri o estacionamento do hospital três vezes, apavorada demais para dar marcha a ré mesmo na maior das vagas, até que eu percebi que Nathan e Will estavam começando a perder a paciência. Então, finalmente, desci a rampa da cadeira de rodas e Nathan ajudou Will a sair.
— Bom trabalho — disse Nathan, dando um tapinha nas minhas costas ao sair do carro, mas achei difícil acreditar que fora mesmo um bom trabalho.
Há coisas que você não percebe até acompanhar uma pessoa numa cadeira de rodas. Uma delas é como a maioria dos calçamentos é malconservada, com buracos mal remendados ou desnivelada. Andando devagar ao lado de Will enquanto ele mesmo dirigia a cadeira, notei que cada laje em desnível causava nele uma dolorosa chacoalhada, ou como ele frequentemente precisava se desviar com cuidado de algum obstáculo em potencial. Nathan fingia não notar, mas eu vi que ele também observava.
Will estava apenas sério e decidido.
A outra coisa é como a maioria dos motoristas é desatenta. Param em cima da calçada ou tão perto de outro carro que é impossível para alguém em uma cadeira de rodas atravessar a rua. Fiquei pasma, algumas vezes até pensei em deixar um bilhete grosseiro espetado no limpador de para-brisa, mas Nathan e Will pareciam estar acostumados. Nathan mostrou um lugar onde dava para atravessar e enfim conseguimos, cada um de nós flanqueando Will.
Ele não disse uma única palavra desde que saímos de casa.
O hospital era um prédio baixo e reluzente, cuja recepção imaculada parecia com um desses hotéis modernosos, talvez para provar que se tratava de um hospital particular. Recuei enquanto Will dizia seu nome para a recepcionista, e então segui Nathan e ele por um longo corredor. Nathan carregava uma enorme mochila com tudo o que Will podia precisar durante aquela rápida visita, desde copos especiais até roupas extras. Ele havia feito a mochila na minha frente durante a manhã, detalhando cada possível eventualidade.
— Acho bom que não precisemos fazer isso sempre — disse ele, surpreendendo minha expressão assustada.
Não acompanhei a consulta. Nathan e eu nos recostamos nas confortáveis cadeiras do lado de fora da sala do médico. O lugar não tinha aquele cheiro de hospital e havia um jarro com flores frescas no peitoril da janela. E não eram flores comuns. Eram enormes coisas exóticas cujo nome eu desconhecia, artisticamente arrumadas em buquês minimalistas.
— O que eles estão fazendo lá dentro? — perguntei, depois que estávamos lá havia meia hora.
Nathan levantou os olhos do livro.
— É apenas o check-up semestral.
— Para ver se ele está melhorando?
Nathan pousou o livro.
— Não vai melhorar. Ele tem uma lesão na coluna.
— Mas você faz fisioterapia e outras coisas com ele.
— Para manter as condições físicas, para os músculos não atrofiarem, os ossos não desmineralizarem, evitar trombose nas pernas, essas coisas.
Quando voltou a falar, sua voz era suave, como se achasse que podia me desapontar.
— Ele não vai mais andar, Louisa. Isso só acontece nos filmes de Hollywood. Tudo o que fazemos é tentar evitar que sinta dor e manter os movimentos que ele tem.
— Ele faz essas coisas com você? As coisas de fisioterapia? Parece que ele não quer fazer nada do que eu sugiro.
Nathan franziu o nariz.
— Sim, ele faz as coisas, mas acho que sem emoção. Quando comecei, ele estava muito determinado. Mergulhou fundo na reabilitação, mas, depois de um ano sem melhoras, acho que concluiu que era muito difícil continuar acreditando que isso funcionaria.
— Acha que ele deve continuar?
Nathan olhou para o chão.
— Sinceramente? Ele é um tetraplégico com lesão em C5 e C6. Isso significa que nada funciona abaixo daqui, mais ou menos... — Nathan colocou a mão na parte superior do tórax. — Os médicos ainda não conseguiram descobrir como consertar a medula espinhal.
Olhei para a porta, pensando na expressão de Will no percurso ensolarado de inverno, e no rosto alegre do homem esquiando naquelas férias.
— No entanto, ainda há muitos tipos de avanços médicos, não? Quer dizer... em algum lugar como este aqui... devem estar trabalhando nessas coisas o tempo todo.
— É um hospital muito bom — disse ele, calmamente.
— Onde há vida, há esperança, não é assim?
Nathan olhou para mim e depois voltou-se para seu livro.
— Sem dúvida — concordou.

* * *

Às quinze para as três, fui pegar um café a pedido de Nathan. Ele disse que aquelas consultas podiam demorar e que montaria guarda no forte até que eu voltasse. Circulei um pouco pela recepção, folheei umas revistas na banca de jornais, me demorando nas barras de chocolate.
E, como era de se esperar, me perdi na volta e tive de perguntar a várias enfermeiras para onde eu deveria ir. Duas delas não tinham ideia. Quando consegui chegar, com o café esfriando em minhas mãos, o corredor estava vazio. Ao me aproximar, pude ver que a porta do consultório estava escancarada. Hesitei do lado de fora, mas agora eu escutava a voz da Sra. Traynor em minhas orelhas o tempo todo, criticando-me por não ficar com ele. Eu tinha feito de novo.
— Então, nos veremos daqui a três meses, Sr. Traynor — dizia uma voz masculina. — Dosei os remédios antiespasmódicos e vou garantir que alguém telefone para o senhor com o resultado dos exames. Provavelmente na segunda-feira.
Ouvi a voz de Will.
— Posso comprar esses remédios na farmácia lá de baixo?
— Sim. Aqui mesmo. Eles também devem ter um pouco mais desses.
Uma voz de mulher.
— Posso pegar a pasta?
Percebi que eles deviam estar prestes a sair. Bati na porta e alguém disse para eu entrar. Dois pares de olhos giraram em minha direção.
— Sinto muito — disse o médico, levantando-se —, pensei que fosse o fisioterapeuta.
— Sou a... ajudante de Will — falei, segurando na porta. Will estava inclinado na cadeira de rodas enquanto Nathan vestia a camisa nele. — Desculpe... pensei que estivesse pronto.
— Um minuto, pode ser, Louisa? — A voz de Will cortou a sala.
Murmurando desculpas, saí com o rosto queimando.
O que me chocou não foi ver o corpo de Will descoberto, magro e cheio de escaras. Não foi o olhar vagamente irritado do médico, do mesmo gênero que a Sra. Traynor me lançava todos os dias – um olhar que me convencia de que eu continuava a ser a abominável mulher das neves, mesmo ganhando mais por hora.
Não, o que me chocou foram as marcas vermelhas arroxeadas nos pulsos dele, as compridas e denteadas cicatrizes que não podiam ser disfarçadas, por mais rápido que Nathan puxasse as mangas da camisa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário