terça-feira, 29 de março de 2016

Capítulo 4

Passaram-se duas semanas, e com elas surgiu uma espécie de rotina. Todos os dias eu chegava na Granta
House às oito da manhã, avisava que estava lá e, quando Nathan terminava de ajudar Will a se vestir, eu ouvia cuidadosamente ele me dizer o que eu precisava saber a respeito dos medicamentos de Will e, o mais importante, como estava o humor dele.
Depois que Nathan saía, eu sintonizava o rádio ou a TV para Will, dava seus comprimidos, às vezes amassando-os no pequeno pilão de mármore. Geralmente, depois de mais ou menos dez minutos ele deixava claro que estava cansado da minha presença. Eu então realizava com dificuldade as pequenas tarefas domésticas do anexo, lavando panos de prato que não estavam sujos ou usando partes aleatórias do aspirador para limpar os menores cantinhos de cortinas ou peitoris de janelas, enfiando minha cabeça pela porta religiosamente a cada quinze minutos, conforme a Sra. Traynor me pedira. E, quando eu fazia isso, Will continuava sentado em sua cadeira, olhando para fora na direção do jardim.
Mais tarde, eu levava um copo d’água, ou uma daquelas bebidas calóricas que serviam supostamente para manter seu peso e que pareciam cola para papel de parede num tom pastel, ou lhe dava comida. Ele podia mexer um pouco as mãos, mas não os braços, por isso precisava ser alimentado garfada a garfada. Essa era a pior parte do dia; parecia errado que, de algum modo, um adulto recebesse comida na boca e meu embaraço me fazia parecer desajeitada e inábil. Will odiava tanto isso que não conseguia nem me olhar enquanto eu o alimentava.
E então, pouco antes da uma da tarde, Nathan chegava e eu pegava o meu casaco e sumia para andar pelas ruas. Às vezes comia meu almoço no ponto de ônibus que ficava do lado de fora do castelo. Fazia frio e provavelmente eu parecia patética empoleirada ali, comendo sanduíches, mas eu não ligava. Não conseguia passar o dia inteiro dentro daquela casa.
À tarde, eu colocava um filme – Will era sócio de uma locadora de DVDs e chegavam filmes novos pelo correio todos os dias – mas ele nunca me convidou para assistir a nenhum com ele, então eu costumava ficar na cozinha ou no quarto extra.
Passei a levar um livro ou uma revista, mas me sentia estranhamente culpada por não estar trabalhando de verdade, e não conseguia me concentrar nem um pouco nas palavras. De vez em quando, no final do dia, a Sra. Traynor aparecia – embora nunca falasse muita coisa comigo além do “Está tudo bem?”, cuja única resposta aceitável parecia ser “Sim”.
Ela perguntava a Will se ele queria alguma coisa, às vezes sugeria algo que ele poderia gostar de fazer no dia seguinte – sair ao ar livre, ou visitar algum amigo que havia perguntado por ele – e ele quase sempre respondia com desprezo, quando não diretamente com uma grosseria. Ela parecia magoada, corria os dedos por sua correntinha dourada e sumia de novo.
O pai de Will, um homem gorducho de aparência gentil, costumava chegar quando eu estava saindo. Era o tipo do sujeito que pode ser visto assistindo a um jogo de críquete usando um chapéu panamá e que, aparentemente, desde que se aposentara de seu emprego bem-remunerado na cidade, supervisionava a administração do castelo. Eu desconfiava de que era como um daqueles ricos fazendeiros que de vez em quando planta alguma coisa ele mesmo, só para “manter a mão na massa”. Ele encerrava o expediente todos os dias às cinco em ponto e vinha ver TV com Will. Às vezes, ao sair eu o escutava fazer uma observação sobre alguma coisa do noticiário.
Precisei prestar muita atenção em Will Traynor naquelas primeiras semanas. Reparei que ele parecia determinado a não lembrar em nada com o homem que tinha sido; deixara seu cabelo castanho-claro crescer em uma bagunça disforme e a barba por fazer se espalhava sobre o rosto. Seus olhos cinzentos tinham marcas de cansaço, ou do desconforto que ele sentia quase o tempo todo (Nathan me disse que ele raramente se sentia bem). Eles levavam o olhar vazio de alguém que está sempre alguns passos afastado do mundo a seu redor. Às vezes, eu me perguntava se aquilo não era um mecanismo de defesa de Will, já que a única maneira que encontrou de lidar com sua vida foi fingir que não era com ele que aquelas coisas estavam acontecendo.
Eu gostaria de sentir pena dele. Eu realmente queria. Quando o pegava olhando para fora através da janela, pensava que ele era a pessoa mais triste que eu já conhecera. E, à medida que os dias se passavam e eu notava que sua condição não tinha relação somente com o fato de estar preso naquela cadeira ou com a perda de sua liberdade física, mas por uma série infinita de problemas de saúde, riscos e desconfortos, concluí que, se eu fosse Will, provavelmente também me sentiria infeliz.
Mas, meu Deus, ele era horrível comigo. Tinha uma resposta mordaz para tudo o que eu dizia. Se eu queria saber se ele estava bem aquecido, ele retrucava que era suficientemente capaz de me avisar se precisasse de outro cobertor. Se eu perguntava se o aspirador fazia muito barulho – eu não queria atrapalhar seu filme – Will questionava o porquê daquela pergunta, por acaso eu conseguia fazer o aparelho funcionar em silêncio? Quando eu lhe dava as refeições, ele reclamava que a comida estava quente demais ou fria demais, ou que eu tinha levado a próxima garfada antes de ele ter acabado de mastigar. Ele possuía a habilidade de distorcer quase todas as minhas palavras ou ações, me fazendo parecer uma idiota.
Nessas duas primeiras semanas, fiquei bastante boa em manter uma expressão totalmente neutra, em dar as costas e me retirar para outro cômodo e em falar com ele o mínimo necessário. Comecei a odiá-lo, e tenho certeza de que ele sabia disso.
Eu não imaginava que fosse possível sentir ainda mais falta do meu antigo emprego.
Sentia saudades de Frank e de como ele realmente parecia satisfeito ao me ver quando eu chegava pela manhã. Sentia falta dos clientes, da companhia deles, das conversas fáceis, dos suaves sons de engolir e de coisas sendo mergulhadas em líquidos que pareciam um mar calmo. Aquela casa linda e elegante era vazia e silenciosa como um necrotério. Seis meses, eu repetia mentalmente quando tudo parecia insuportável. Seis meses.
Então, numa quinta-feira, quando eu estava preparando a bebida hipercalórica que Will tomava no meio da manhã, ouvi a voz da Sra. Traynor no corredor. Só que, dessa vez, havia outras vozes também. Parei, ainda com o garfo na mão. Identifiquei apenas uma voz feminina, jovem e clara, e outra, masculina.
A Sra. Traynor surgiu na porta da cozinha e tentei parecer ocupada, batendo rápido o suco no copo especial de Will.
— Misturou na proporção de seis partes de água para quatro de leite? — ela perguntou, observando atentamente a bebida.
— Sim. É o de morango.
— Os amigos de Will vieram visitá-lo. Seria melhor se você...
— Tenho várias coisas para fazer aqui — falei.
Na verdade, estava um tanto aliviada por ter sido dispensada de sua companhia durante mais ou menos uma hora. Rosqueei a tampa do copo.
— As visitas gostariam de um chá ou café?
Ela ficou quase surpresa.
— Sim, seria muito simpático. Café. Acho que vou...
Ela parecia ainda mais tensa que o normal, seu olhar disparando em direção ao corredor, de onde podíamos escutar o murmúrio de vozes. Supus que Will não recebia muitas visitas.
— Eu acho... vou deixá-los conversar. — Deu uma olhadela para o corredor, seus pensamentos pareciam estar longe. — Rupert. É Rupert, um velho amigo do trabalho — disse ela, virando-se de súbito para mim.
Tive o pressentimento de que aquele era de certa forma um momento significativo e que ela queria dividir a notícia com alguém, mesmo que fosse comigo.
— E Alicia. Will e ela foram... muitos próximos... por algum tempo. Café seria adorável. Obrigada, Srta. Clark.

* * *

Hesitei por um instante antes de abrir a porta, empurrando-a com o quadril de modo a conseguir equilibrar a bandeja que estava em minhas mãos.
— A Sra. Traynor disse que gostariam de um café — falei ao entrar, colocando a bandeja na mesa de centro.
Quando pus o copo especial de Will no suporte de sua cadeira, virando o canudinho de modo que ele apenas precisasse ajustar a cabeça para alcançá-lo, olhei furtivamente para as visitas.
Vi primeiro a mulher. Tinha pernas longas e cabelos louros, com a pele num tom levemente dourado. O tipo de mulher que me faz duvidar de que todos os humanos pertençam à mesma espécie. Parecia um puro-sangue. Eu já tinha visto mulheres como aquela algumas vezes, costumavam subir a colina do castelo carregando crianças pequenas que pareciam ter saído de um catálogo de moda e, quando entravam no café, suas vozes eram claras como cristal e despretensiosas ao perguntarem: “Harry, querido, você quer um café? Quer que eu pergunte se fazem macchiato?” Aquela era, sem dúvida, uma mulher macchiato. Tudo nela exalava dinheiro, privilégios e uma vida que parecia sair das páginas de uma revista chique.
Então olhei a moça mais de perto e concluí que ela a) era a mulher na fotografia de esqui de Will e b) parecia muito, muito desconfortável.
Ela beijou Will no rosto e depois recuou, sorrindo desajeitadamente. Usava um colete marrom de pele de carneiro, o tipo de coisa que faria com que eu parecesse o Abominável Homem das Neves, e, em volta do pescoço, uma echarpe de cashmere cinza-clara, na qual começou a mexer nervosamente, como se não conseguisse decidir se tiraria ou não.
— Você parece bem — disse a mulher para ele. — Realmente. Você... deixou o cabelo crescer um pouco.
Will não falou nada. Ficou só olhando para ela, sua expressão mais indecifrável do que nunca. Senti-me ligeiramente grata por não ser eu a pessoa que era olhada daquele jeito.
— Cadeira nova, hein? — O homem deu um tapinha nas costas da cadeira de Will, o queixo contraído e a boca voltada para baixo, em sinal de aprovação, como se admirasse um carro esporte de última linha. — É... bem bacana. Muito... high tech.
Fiquei sem saber o que fazer. Permaneci ali por um momento, trocando o peso do corpo de um pé para outro, até a voz de Will romper o silêncio.
— Louisa, pode colocar um pouco mais de lenha na lareira? Acho que é preciso aumentar um pouco o fogo.
Foi a primeira vez que ele pronunciou meu nome de batismo.
— Claro — concordei.
Ocupei-me em atiçar o fogo e vasculhei o cesto em busca de toras do tamanho certo.
— Meu Deus, lá fora está muito frio — disse a mulher. — É ótimo ter uma boa lareira acesa.
Abri a porta do queimador, cutucando as toras incandescentes com o atiçador.
— Aqui está uns bons graus mais frio do que em Londres.
— É, com certeza — concordou o homem.
— Estou querendo comprar um queimador desse tipo para a minha casa. Parece que é mais eficiente do que uma lareira comum. — Alicia inclinou-se um pouco para examinar o queimador, como se nunca tivesse visto um antes.
— É, ouvi dizer — disse o homem.
— Preciso ver isso. É uma dessas coisas que você quer fazer e depois... — calou-se.
— O café está delicioso — acrescentou ela, após uma pausa.
— Então... o que tem feito, Will? — A voz do homem tinha uma espécie de alegria forçada.
— Pouca coisa, por incrível que pareça.
— Mas a fisioterapia e tal. Está indo bem? Alguma... melhora?
— Rupert, não acredito que eu volte a esquiar tão cedo — disse Will, com a voz transbordando de sarcasmo.
Quase sorri para mim mesma. Esse era o Will que eu conhecia. Comecei a passar a escova para retirar as cinzas do meio do aquecedor. Tive a impressão de que todos me olhavam. O silêncio pareceu carregado. Ponderei por um instante se a etiqueta de minha blusa de tricô estava para fora e lutei contra a urgência de conferir.
— Então... — disse Will, enfim. — A que devo o prazer desta visita? Depois de... oito meses?
— Ah, eu sei. Desculpe. Andei... andei terrivelmente ocupada. Tenho um novo emprego em Chelsea. Sou gerente da loja de Sasha Goldstein. Lembra-se dela? Tenho trabalhado muito nos fins de semana também. A loja fica lotada aos sábados. É muito difícil arrumar tempo livre. — A voz de Alicia tinha ficado frágil. — Liguei umas vezes. Sua mãe lhe disse?
— As coisas têm estado um pouco complicadas nos Lewins. Você... você sabe como é, Will. Temos um novo sócio. Um camarada de Nova York. Bains. Dan Bains. Chegou a conhecê-lo?
— Não.
— O maldito homem parece trabalhar vinte e quatro horas por dia e espera que todo mundo faça o mesmo. — Dava para escutar o alívio do homem por achar um assunto a respeito do qual ele estava confortável. — Você conhece a velha ética de trabalho ianque: nada mais de almoços demorados, nada de piadas sujas... Will, vou lhe contar. Até a atmosfera do lugar mudou.
— É mesmo?
— Oh, céus, é. Presenteísmo em larga escala. Às vezes, eu sinto que nem posso me levantar da cadeira.
Todo o ar da sala pareceu ter sido sugado de repente. Alguém tossiu.
Levantei-me e limpei as mãos na calça jeans.
— Eu vou... estou indo pegar mais lenha — murmurei, na direção de Will.
Peguei o cesto e escapuli.
O ar estava enregelante, mas me demorei do lado de fora, matando tempo enquanto escolhia pedaços de madeira. Achava que era melhor perder um dedo para o congelamento do que voltar para aquela sala. Mas estava frio demais e o meu indicador, que uso para costurar, começou a ficar azulado e enfim precisei admitir a derrota.
Arrastei a lenha o mais lentamente possível, entrando no anexo, e voltei devagar pelo corredor. Ao me aproximar da sala, ouvi a voz da mulher escapando pela porta levemente aberta.
— Na verdade, Will, há outro motivo para virmos aqui — dizia ela. — Nós... temos uma novidade.
Vacilei do lado de fora da porta, abraçada ao cesto de lenha.
— Achei... quer dizer, nós achamos... que... você tinha o direito de saber... mas é o seguinte. Rupert e eu vamos nos casar.
Fiquei totalmente imóvel, calculando se podia dar meia-volta sem ser ouvida.
A mulher continuou de maneira pouco convincente:
— Olha, sei que deve ser um pouco chocante para você. Na verdade, foi um choque também para mim. Nós... isso... bem, as coisas só começaram muito depois que...
Meus braços começaram a doer. Olhei para baixo, em direção ao cesto, tentando decidir o que fazer.
— Bom, você sabe que você e eu... nós...
Outro silêncio pesado.
— Will, por favor, diga alguma coisa.
— Parabéns — disse ele, por fim.
— Sei o que você está pensando. Mas nenhum de nós esperava que isso fosse acontecer. De verdade. Durante um tempo enorme fomos apenas amigos. Amigos que estavam preocupados com você. É que Rupert me deu o apoio mais incrível do mundo depois do seu acidente...
— Que generoso.
— Por favor, não fique assim. Isso é tão esquisito. Eu estava completamente apavorada só de pensar em contar para você. Nós dois estávamos.
— Evidentemente — disse Will, sem inflexão na voz.
A voz de Rupert os interrompeu.
— Olha, só estamos contando porque nós dois nos importamos com você. Não queríamos que você soubesse por outra pessoa. Mas a vida continua. Você sabe. Faz dois anos, afinal de contas.
Fez-se silêncio. Percebi que eu não queria ouvir mais nada e fui me afastando devagar da porta, grunhindo baixo com o esforço. Porém, quando a voz de Rupert voltou, veio em um volume tão maior que eu ainda podia ouvi-lo.
— Vamos lá, cara. Eu sei que deve ser muitíssimo difícil... tudo isso. Mas, se você se importa com Lissa, deve querer que ela tenha uma vida bacana.
— Diga alguma coisa, Will. Por favor.
Eu podia imaginar a cara dele. Eu podia ver aquele olhar que ele fazia, ao mesmo tempo inescrutável e carregado de certo desdém frio.
— Parabéns — disse Will, finalmente. — Tenho certeza de que serão muito felizes.
Alicia começou a dizer alguma coisa (algo que não entendi) e foi interrompida por Rupert.
— Vamos, Lissa. Acho que devemos ir. Will, não viemos aqui esperando a sua bênção. Foi uma gentileza. Lissa pensou... bem, quer dizer, nós dois apenas pensamos... que você devia saber. Desculpe, meu velho. Eu... eu espero que as coisas melhorem para você e que você mantenha contato quando... você sabe... quando a poeira baixar um pouco.
Ouvi passos e inclinei-me sobre o cesto de lenha, como se tivesse acabado de voltar.
Ouvi-os no corredor e então Alicia apareceu na minha frente. Seus olhos estavam vermelhos, como se ela estivesse prestes a chorar.
— Posso usar o banheiro? — perguntou, com a voz embargada e emocionada.
Levantei o dedo devagar e apontei, muda, a direção.
Então, ela me olhou de maneira dura e percebi que o que eu sentia devia estar estampado em minha cara. Nunca fui muito boa em esconder meus sentimentos.
— Sei o que você está pensando — disse ela, após uma pausa. — Mas eu tentei. Tentei mesmo. Durante meses. E ele apenas me afastava. — O maxilar dela estava rígido, a expressão estranhamente furiosa. — Ele realmente não me queria aqui. Deixou isso bem claro.
Parecia esperar que eu dissesse alguma coisa.
— Não é realmente da minha conta — falei, por fim.
Nós duas ficamos nos encarando.
— Sabe, você só pode ajudar alguém que aceita ajuda — disse ela.
E então ela se foi.
Esperei alguns minutos, ouvi o barulho do carro deles saindo pela passagem de veículos e então entrei na cozinha. Fiquei por lá e esquentei água na chaleira, ainda que não quisesse tomar chá. Folheei uma revista que já tinha lido. Finalmente, entrei de volta no corredor e, com um grunhido, peguei o cesto de lenha, arrastando-o para a sala de estar, batendo com o objeto delicadamente na porta antes de entrar, para que Will soubesse que eu estava chegando.
— Estava pensando se você gostaria que eu... — comecei.
Não havia ninguém lá.
A sala estava vazia.
Foi aí que ouvi o estrépito. Lancei-me em direção ao corredor bem a tempo de ouvir outro barulho, seguido pelo som de vidro se estilhaçando. Estava vindo do quarto de Will.
Oh, Deus, permita que ele não tenha se machucadoEntrei em pânico, a recomendação da Sra. Traynor girando em minha cabeça. Deixei-o sozinho por mais de quinze minutos.
Apressei-me pelo corredor, deslizei até parar na porta, onde fiquei, as duas mãos segurando o batente. Will estava no meio do quarto, aprumado em sua cadeira de rodas, com uma bengala equilibrada sobre os braços da cadeira, de modo que o bastão se projetava uns vinte centímetros à esquerda: uma lança de justa. Não havia mais um único porta-retratos nas compridas prateleiras, as molduras caras jaziam despedaçadas por todo o chão, o tapete cravejado de reluzentes cacos de vidro. Seu colo estava pulverizado com pedaços de vidro e molduras de madeira quebradas. Absorvi aquela cena de destruição, sentindo meu coração vagarosamente reduzir devagar o ritmo à medida que eu compreendia que ele não estava ferido. Will respirava pesadamente, como se aquilo que acabara de fazer tivesse sido um grande esforço para ele.
A cadeira voltou-se em minha direção, triturando de leve os vidros no chão. Seus olhos encontraram os meus. Eles estavam infinitamente cansados. E me desafiavam a oferecer compaixão.
Olhei para baixo, em direção ao colo de Will, depois para o chão a seu redor. Eu conseguia apenas distinguir a foto dele com Alicia, cujo rosto agora estava oculto por uma moldura de prata dobrada, em meio a outras vítimas.
Engoli em seco examinando a cena, e, aos poucos, levantei os olhos para os dele.
Foram os segundos mais longos que já tive.
— O pneu dessa coisa fura? — perguntei, por fim, apontando com a cabeça para a cadeira de rodas. — Porque não tenho a menor ideia de onde posso colocar um macaco para levantá-la.
Ele arregalou os olhos. Por um instante, pensei que eu realmente tivesse estragado tudo. Mas um mínimo lampejo de sorriso passou pelo rosto dele.
— Olha, não se mexa. Vou buscar o aspirador — falei.
Escutei a bengala cair no chão. Quando saí da sala, acho que ouvi um pedido de desculpas.

* * *

O Kings Head ficava sempre cheio nas tardes de quinta e naquele canto da pequena sala ele estava mais agitado ainda. Sentei-me espremida entre Patrick e um homem – cujo nome acho que era Rutter, e que olhava de vez em quando para a decoração composta por arreios e selas de cavalo pendurados nas vigas de carvalho acima da minha cabeça e para as fotos do castelo que as pontuavam – e tentei aparentar estar vagamente interessada na conversa ao redor, que parecia versar principalmente sobre taxas de gordura corporal e quantidade de carboidratos.
Sempre achei que as reuniões quinzenais dos Tratores do Triatlo de Hailsbury deviam ser o pesadelo de um dono de pub. Só eu estava consumindo bebida alcoólica e meu solitário pacote de salgadinhos estava amassado e vazio na mesa. Todos bebericavam água mineral ou conferiam a quantidade de adoçante de suas Diet Cokes.
Quando finalmente pediam comida, não se permitiam o luxo de um molho de salada que não fosse light sobre a folha de alface, ou um pedaço de frango que ainda ostentasse a pele. Eu costumava pedir batata frita só para poder ver todos fingindo que não queriam uma.
— Phil perdeu o fôlego aos sessenta quilômetros. Disse que realmente ouviu vozes. Os pés pesavam como chumbo. Ficou com aquela cara de fantasma, sabe?
— Comprei aqueles tênis japoneses com balanceamento sob medida. Com eles, reduzi em quinze minutos meu tempo nas 10 milhas.
— Não viaje com uma capa de bicicleta flexível. A bicicleta de Nigel chegou ao campo de Triatlo parecendo um cabide enferrujado.
Eu não podia dizer que gostava dos encontros dos Tratores do Triatlo mas, com minhas horas a mais de trabalho e os horários dos treinos de Patrick, aquela era uma das raras oportunidades em que conseguíamos nos ver. Ele sentou-se ao meu lado, vestindo short sobre as coxas musculosas apesar do frio intenso lá fora. Era uma questão de honra que os sócios do clube usassem o mínimo possível de roupa. Os homens eram magros e sarados, ostentavam camadas sobrepostas de roupas esportivas obscuras e caras, que garantiam propriedades extras de “palitice” ou de peso corporal mais leve que o ar. Eles tinham nomes como Scud e Trig e alongavam uns aos outros, mostrando machucados ou alegando crescimento muscular. As garotas não usavam maquiagem e tinham a bendita aparência de quem não pensa em mais nada que não seja praticar jogging por quilômetros em condições glaciais. Olhavam para mim com uma leve repugnância (ou talvez até mesmo com incompreensão), certamente tentando calcular minha massa gorda e minha massa magra e considerando que a proporção estava abaixo das expectativas.
— Foi horrível — comecei a contar para Patrick, me perguntando se poderia pedir cheesecake sem que todos me lançassem um Olhar Mortal. — A namorada com o melhor amigo dele.
— Você não pode culpá-la — disse ele. — Ou vai me dizer que ia continuar comigo se eu ficasse paralisado do pescoço para baixo?
— Claro que ia.
— Não, não ia. E nem eu esperaria isso de você.
— Pois eu ia.
— Mas eu não ia querer. Não ia querer que uma pessoa ficasse comigo por pena.
— Mas quem disse que seria por pena? Por dentro, você seria a mesma pessoa.
— Não, não seria. Não seria a mesma pessoa de maneira alguma. — Ele franziu o nariz. — Eu não ia querer viver. Depender dos outros para qualquer coisa. Ter estranhos limpando o meu traseiro...
Um homem de cabeça raspada se enfiou entre nós dois.
— Pat, você experimentou aquela nova bebida em gel? — perguntou. — Na semana passada, uma delas explodiu na minha mochila. Nunca vi nada igual.
— Não sei se experimentei, Trig. Para mim basta uma banana e um Luco zade todos os dias.
— Dazzer tomou uma Diet Coke quando participou do Norseman Xtreme. Passou mal a novecentos metros de altura. Meu Deus, como nós rimos.
Abri um leve sorriso.
O homem de cabeça raspada sumiu e Patrick voltou a falar comigo, aparentemente ainda ponderando sobre o destino de Will.
— Meu Deus. Pense em tudo que não poderia mais fazer... — Balançou a cabeça. — Nada mais de corrida, nada mais de andar de bicicleta. — Olhou para mim como se tivesse acabado de lhe ocorrer. — Nada de sexo.
— Claro que dá para fazer sexo. Só que a mulher tem de ficar por cima.
— Ficaríamos fodidos, então.
— Engraçadinho.
— Além do mais, se você fica paralítico do pescoço para baixo, imagino que... hum... o equipamento não deve funcionar direito.
Pensei em Alicia. Eu tenteiela disseTentei mesmo. Durante meses.
— Tenho certeza de que funciona com algumas pessoas. De todo modo, deve ter um jeito para isso, se você... usar a imaginação.
— Ah. — Patrick deu um golinho na água. — Você precisa perguntar para ele amanhã. Olha, você disse que ele é horrível. Talvez ele já fosse assim antes do acidente. Talvez esse seja o verdadeiro motivo para ela ter terminado o relacionamento. Já pensou nisso?
— Não sei... — Pensei na foto. — Eles pareciam tão felizes juntos.
Mas o que prova uma foto? Eu tinha uma num porta-retratos em casa, na qual eu estava sorrindo para Patrick de maneira radiante, como se ele tivesse acabado de me salvar de um prédio em chamas, quando na verdade eu tinha acabado de dizer que ele era um “completo idiota” e ele tinha reagido com um enérgico “ah, não enche!”.
Patrick perdeu o interesse pelo tema.
— Ei, Jim... Jim, já viu a nova bicicleta superleve? É boa?
Deixei que ele mudasse de assunto, e fiquei pensando no que Alicia tinha dito. Eu podia imaginar muito bem Will afastando-a. Mas, certamente, se você ama alguém, é sua função ficar com ele? Para ajudar na depressão? Na doença e na saúde e tal?
— Mais uma bebida?
— Uma vodca com tônica. Tônica light — acrescentei, quando ele franziu o cenho.
Patrick deu de ombros e foi em direção ao bar.
Comecei a me sentir meio culpada pela maneira como estávamos falando do meu patrão. Ainda mais quando percebi que ele provavelmente suportava aquela situação o tempo todo. Era quase impossível não especular sobre os aspectos mais íntimos de sua vida. Eu me desliguei do assunto. Havia uma conversa sobre um fim de semana de treino na Espanha. Eu ouvia meio distraída, até que Patrick reapareceu do meu lado e me cutucou.
— Já pensou?
— No quê?
— Fim de semana na Espanha. Em vez das férias na Grécia. Você pode ficar de pernas para o ar na piscina se não gostar do passeio de sessenta quilômetros de bicicleta. Podemos conseguir voos baratos. Seis semanas. Agora que você está nadando em dinheiro...
Pensei na Sra. Traynor.
— Não sei... não sei se eles vão gostar que eu tire férias tão cedo.
— Você se incomoda se eu for, então? Adoro a ideia de treinar na altitude. Pretendo participar do maior.
— Do maior o quê?
— Triatlo. O Norseman Xtreme. Cem quilômetros de bicicleta, cinquenta a pé, depois um maravilhoso e longo nado nos mares nórdicos com temperaturas abaixo de zero.
O Norseman era citado com respeito: os que tinham participado exibiam seus machucados como se fossem veteranos de uma guerra distante e especialmente brutal.
Patrick estava quase estalando os lábios com a expectativa. Olhei para meu namorado e me perguntei se ele era um alienígena. Pensei por um instante que eu gostava mais dele na época em que trabalhava em televendas e não conseguia passar por um posto de gasolina sem fazer um estoque de barras de chocolates Mars.
— Você vai participar?
— Por que não? Nunca estive tão em forma.
Pensei em todos aqueles treinos extra, as infindáveis conversas sobre peso e distância, preparo físico e resistência. Era difícil conseguir a atenção de Patrick durante a maior parte do tempo naqueles dias.
— Você podia ir comigo — disse ele, embora nós dois soubéssemos que ele não acreditava no que dizia.
— É melhor você ir sozinho — respondi. — Claro. Vá em frente — insisti.
E pedi o cheesecake.

* * *

Se eu achava que os acontecimentos do dia anterior poderiam quebrar o gelo na Granta House, estava enganada.
Cumprimentei Will com um largo sorriso e um animado “oi”, e ele nem sequer se incomodou em tirar os olhos da janela.
— Não está num bom dia — murmurou Nathan, vestindo o casaco para sair.
Era uma manhã de tempo muito ruim, com nuvens baixas e uma chuva batendo sem piedade nas janelas, e estava difícil de imaginar que o sol voltaria a brilhar em algum momento. Até mesmo eu ficava carrancuda num dia como aquele. Portanto, não era surpresa que Will estivesse pior. Comecei a me ocupar das tarefas matinais, repetindo para mim mesma o tempo todo que nada daquilo importava. Você não precisa gostar do seu patrão, não é? Um monte de gente não gosta. Pensei no chefe de Treena, um sujeito de cara fechada, divorciado várias vezes, que controlava a quantidade de vezes que ela ia ao banheiro e era conhecido por perguntar de maneira áspera se Trena não achava que tinha excesso de atividade renal. Além do mais, eu já completara duas semanas de trabalho. O que significava que me faltavam apenas cinco meses e treze dias para sair.
As fotos estavam cuidadosamente empilhadas na prateleira de baixo da estante, onde eu as havia colocado no dia anterior, e então, agachada, comecei a retirá-las dos porta-retratos, separando-as, determinando quais molduras eu seria capaz de consertar. Sou muito boa em consertar coisas. Além disso, pensava que poderia ser uma forma bastante produtiva de passar o tempo.
Estava fazendo isso havia uns dez minutos quando o zumbido discreto da cadeira de rodas motorizada me alertou da chegada de Will.
Ele ficou à porta, olhando para mim. Havia manchas escuras sob seus olhos. Nathan me dissera que, às vezes, Will não conseguia dormir. Eu não quis pensar em como deveria ser isso, ficar preso numa cama, tendo por companhia só pensamentos ruins pela madrugada a fora.
— Acho que posso ver se consigo consertar algumas dessas molduras — falei, segurando uma. Era a foto dele fazendo bungee jump. Tentei parecer animada. Ele precisa de alguém feliz, alguém para cima.
— Por quê?
Pestanejei.
— Bom... acho que algumas dessas podem ser salvas. Trouxe um pouco de cola de madeira, se estiver tudo bem para você que eu mexa nelas. Se quiser substituí-las, posso ir ao centro da cidade no horário do almoço e ver se encontro outros porta-retratos. Ou podíamos ir os dois, se você quiser dar uma volta...
— Quem mandou você começar a consertar?
Ele me encarava firmemente.
Oh-oh, pensei.
— Eu... eu só estava querendo ajudar.
— Você queria consertar o que eu fiz ontem.
— Eu...
— Sabe de uma coisa, Louisa? Seria ótimo se alguém, por uma vez, prestasse atenção ao que eu quero. Destruir essas fotos não foi um acidente. Não foi uma tentativa de decoração radical de interiores. Eu fiz isso porque realmente não quero vê-las.
Levantei-me.
— Desculpe. Não pensei que...
— Você achou que sabia. Todo mundo acha que sabe do que eu preciso. Vamos colocar as malditas fotos juntas de novo. Vamos dar ao pobre aleijado alguma coisa para olhar. Não quero ter as porcarias dessas fotos me encarando toda vez que estiver na cama até alguém chegar e me tirar de lá. Certo? Você acha que é capaz de entender isso?
Engoli em seco.
— Eu não ia consertar aquela com Alicia... não sou tão idiota assim... só pensei que daqui a pouco você poderia...
— Oh, Céus... — Ele virou as costas se afastando, a voz sarcástica. — Por favor, me poupe de psicoterapia. Continue lendo suas revistas de fofoca ou seja lá o que você faça quando não está preparando chá.
Minhas bochechas ficaram em chamas. Observei-o manobrar a cadeira no corredor estreito e minha voz saiu antes mesmo de eu saber o que estava fazendo.
— Você não precisa se comportar como um babaca.
As palavras pairaram no ar.
A cadeira de rodas parou. Houve uma longa pausa, e então ele deu marcha a ré e fez a volta devagar, até poder me encarar, sua mão no pequeno joystick.
— O quê?
Olhei para ele, o coração batendo acelerado.
— Seus amigos receberam um tratamento de merda. Ótimo. Eles provavelmente mereciam. Mas eu estou aqui todos os dias apenas tentando fazer meu trabalho melhor que posso. Por isso, eu ficaria muito satisfeita se você não fizesse da minha vida algo tão desagradável, ao contrário do que você faz com a vida de todo mundo.
Will arregalou um pouco os olhos. Passou-se um instante até ele falar de novo.
— E se eu disser que não quero mais você aqui?
— Não fui contratada por você. Fui contratada pela sua mãe. E, a não ser que ela não me queira mais aqui, vou continuar. Não porque eu me importe particularmente com você, ou com este trabalho idiota, ou por querer mudar a sua vida de alguma maneira, mas porque preciso do dinheiro. Certo? Eu realmente preciso desse dinheiro.
Aparentemente, a expressão de Will Traynor não se alterou muito, mas acho que vi espanto ali, como se não estivesse acostumado a ter alguém discordando dele.
Ai, droga, pensei, como se a verdade do que eu tinha acabado de fazer começasse a emergir. Eu realmente estraguei tudo dessa vez.
Mas Will apenas ficou me olhando por um tempo e, como eu não desviei o olhar, deu um pequeno suspiro, como se quisesse dizer algo desagradável.
— Muito bem — disse ele, e virou-se na cadeira de rodas. — Apenas coloque as fotos na gaveta de baixo, sim? Todas.
E, com um zunido baixo, foi embora.

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